21 outubro 2008

Finalmente!

Dezoito anos depois da "encenação", a viagem acabava por se realizar.
Estávamos em 1990 quando Zinda disse à família que iria passar uns dias a Sevilha, a casa da sua amiga espanhola, Annie, que a convidara para umas férias mais tranquilas.
O plano inicial fora ir com o marido e a filha à União Soviética, mas uma biopsia à mama viera atravessar-se no seu caminho. Que isto de planear a vida não passa de ilusão; na realidade, traçamos uma rota, agarramo-nos a um mapa, para depois acabarmos por improvisar o itinerário ao sabor dos ventos que a vida nos traz.

Agora, em 2008, ambas já viúvas, ambas com os ombros carregados de solidão e sofrimento, deixariam para trás, por uns dias, as marcas que as doenças haviam vincado nos seus rostos e corações.
Annie, de ascendência espanhola e alemã, foi a anfitriã incansável de uma semana tipicamente andaluza.
Ao ritmo morno da cidade que apenas se agita para a fiesta, passaram os dias em passeios pontuados pelo descanso da siesta, que lhes permitiam a ida às tascas tapear um jantar tardio, à boa moda espanhola. Cerveja fresca, conversa morna, dias que se completavam num tom alegre.

O Parque Maria Luisa, a Praça de Espanha, o bairro do Arenal, cúmplices desta amizade de muitas décadas, testemunharam as deambulações animadas, por vezes acompanhadas por amigos de Annie, conhecedores dos melhores palcos de flamenco da Triana.
Igrejas, catedrais, competem em popularidade com a sensualidade de Cármen (que, por sinal, era o nome da mãe da Annie) e de D. Juan, tradição e exotismo em convívio íntimo e espontâneo.
A Plaza de la Maestranza, a Giralda e os recuerdos, as manzanillas saboreadas ao som da brisa fresca, tudo isto foi 2008.

Em 1990, enquanto o marido e a filha voavam para Moscovo, Zinda aguardava a cirurgia que a deixaria amputada.
Numa atitude de coragem inigualável, deixou-os partir de férias, convictos de que ela iria para Sevilha. Ocultou o resultado da análise. Não lhes disse que já o obtivera e que o veredicto era o temido.
Tumor maligno. Carcinoma da mama.
A ida a Sevilha seria mais adequada para o estado de cansaço em que se encontrava pela expectativa, era a versão oficial.

Foi assim que eu e o meu pai nos afastámos, ignorantes, enquanto a minha mãe ficou. Em casa.
Duas vezes esteve no hospital. De ambas as vezes, urgências foram colocadas à sua frente no bloco operatório e ela voltou à casa vazia, à espera de nova chamada. Que ainda não acontecera quando nós aterrámos em Lisboa.
Foi só então que tomámos conhecimento do drama da minha mãe.

Por isso, quando da sua típica hesitação perante este convite, tão real como o tempo que se escoa, não descansei enquanto não a vi de partida. Para gozar as férias há tantos anos inventadas.

13 comentários:

Patti disse...

Nem sei que te diga... que coragem tão grande e que pessoa tão imensa ela deve ser.
Que bom que a viagem se proporcionou e agora irão disfrutá-la como merecem.
Grande beijinho

Maria disse...

Há estórias de vidas que me deixam sem palavras...
Percebo a tua mãe. Também me isolo e quero ficar sozinha nos momentos mais difíceis...
Ainda bem que, embora noutra situação, a viagem a Barcelona se concretizou...

Um beijo

Carla disse...

arrepiei-me com a intensidade do amor e abnegação da tua mãe
um beijo de parabéns pela pessoa excepcional que deve ser
e outro para ti

Anónimo disse...

Boto acima obviamente... não sei bem como aqui vim dar, mas sei que vim por bons motivos, que acabei de confirmar ao passear por cá. Parabéns pelo espaço. Convido-te a aparecer lá no meu cantinho.
Abraço,
Sónia Pessoa

Anónimo disse...

Desculpa, pareceria até insensível não comentar este post... intenso, de coragem...

BlueVelvet disse...

Já sabia da viagem, mas não da história.
Nem tenho palavras para comentar o que escreveste.
Deixo-te um beijinho.
Falamos por outra via.

Pena disse...

Deslumbrante Amiga de sonho:
Uma excelente lição de força, garra, tenacidade e encanto de persistência.
Admirável Mãe ENORME.
Beijinhos amigos de respeito e estima.
Com consideração.
Adorei!


pena (Memórias Vivas e Reais)
Tem no meu blog algo para si.
OBRIGADO sentido por existir.

Anónimo disse...

Que grande Mãe Coragem!E como eu a compreendo tão bem!

Alexandre disse...

Estou muito comovido, com a história e a maneira como a conseguiste escrever... e há uma coisa que quero afirmar aqui (pois li várias vezes o teu texto): ESTE É POST MAIS BONITO QUE JÁ LI!!!

Já lá está o post da Arrábida, ufa!!!

f@ disse...

Escrito assim... comove... e move tb os mto os nossos sentidos...
que os caminhos da vida tantas vezes estritos e com buracos nos fazem cair e levantar...
o ser humano tem forças inconscientes... e uma luz que lá no fundo nunca de apaga...
parabéns pelo brilho deste post
e beijinhos das nuvens

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá querida Amiga, O que acabei de ler, é de tal forma intenso que me deixa sem palavras... Beijinhos de ternura,
Fernandinha

ANTONIO SARAMAGO disse...

há realmente pessoas de uma coragem sem limites.

Anónimo disse...

Bemmm....Ufa...! Conheço a tua mãe, sei que ela é uma pessoa de uma enorme coragem (embora possa não parecer) mas esta história é realmente de quem tem uma imensa força.
Segundo sei adorou as férias de 2008 em Sevilha e de certeza que ainda lá ira voltar mais vezes, quem sabe com a filha e os netos. Um grande beijo para a tua mãe.

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