25 março 2008

Angola, 1950

(foto retirada do blogue Angola Huíla Namibe Kunene Luanda Abril 2007)

Hoje, deixo-vos um excerto da expedição (mental) em que mergulhei nos últimos tempos, sempre que os imprevistos me dão tréguas... trata-se da experiência de um familiar que partiu em 1948 para Angola, sem conhecer lá ninguém. Viveu e trabalhou na Lunda, num serviço altamente solitário, o da prospecção. Lá faleceu, em 1964, num acidente, vários anos antes de eu nascer. O nome que aqui apresento não corresponde ao seu nome real. O episódio é uma cena de caça.

(…)
O impulso caçador cresce com o tempo. Resiste à cautela, impondo-se.
E com António o crescimento de tal impulso era tanto mais evidente quanto a distância a que ele se encontrava de qualquer vestígio de sociedade. A vida resumia-se à Natureza solitária.
Assim, uma noite dispôs-se a dar uma volta após o jantar, acompanhado por três nativos, à procura de qualquer animal.
Percorridas as primeiras centenas de metros, os uivos dum lobo quebraram a monotonia da noite e o silêncio da marcha. O animal estaria próximo do acampamento, mas do lado Norte do Luconha. Não lhes interessando procurá-lo, continuaram a marcha, já desconfiando que não encontrariam caça, devido aos uivos.
Porém, a quatro quilómetros do acampamento, António foca uma cabra. Avança, aponta, o tiro parte e a cabra parece tombar. Procurando-a, eis que, do outro lado do afluente Metache surgem os olhares de quatro bichos, que tomaram por leões.
Momento quase indescritível, de uma tensão incomparável. Continua a focá-los. Eles quase não se mexem, apenas abanavam as cabeças. Uns segundos de hesitação.
-“Leões!”- exclama um dos homens. O nervosismo cresce.
-“Chicolocoço”- afirmava outro, pretendendo acalmar os companheiros. Chicolocoço era um herbívoro de corpulência semelhante à de um boi pequeno.
- Vamos voltar- pedia o terceiro nativo.
A cor dos olhos que os visavam não deixava dúvidas de que se tratava de feras.
António dividia-se entre a vontade de abater um destes animais e a necessidade de manter intacto o físico.
- Caçamos?- perguntavam os dois primeiros companheiros, em tom de incitamento, enquanto o branco se refazia da excitação e os seus nervos voltavam ao lugar. Já eram três a querer dar luta aos animais.
Estavam ainda distantes daqueles, separados por alguns cento e cinquenta metros. Duvidando que se tratasse de leões, mas querendo certificar-se do perigo que indiciava a presença de feras de grande porte, António apontou e disparou. Os bichos moveram-se, mas não fugiram. De novo os focava, posta de parte a hipótese de se tratar de animais inofensivos.
A distância não permitia vê-los, apenas se distinguia a o verde forte cintilante dos seus olhos penetrantes. De novo a questão: avançar ou recuar? Optou pela primeira.
Os animais, no mesmo lugar, aguardavam.
E, ainda sem saber que iria atirar, a uns oitenta metros sensivelmente, domina os nervos e reúne a iniciativa necessária para o ataque às feras. O tiro partiu e os olhos de um bicho deixaram de focar, ao mesmo tempo que se notava a bala atingir o animal. Mas ainda restavam três.
Levara apenas oito balas e uma caíra já no chão.
Mas avançou, incauto, até se encontrar a uns quarenta metros dos alvos. Novo tiro. António sentiu-se sem pinga de sangue ao constatar que atingira o mesmo animal.
- Chiça, os tiros estão fracos!- exclamou, em resposta ao som que não agradara a nenhum dos membros da expedição, habituados a estampidos fortes. Teriam, provavelmente, sido mal carregadas as balas.
Foi quando decidiram acautelar-se, deixando os dois projécteis restantes para uma eventual defesa.
Assim, abandonaram o campo de fogo, sem saberem com que espécie de animal se haviam confrontado. António duvidava já que se tratasse de leões. Do que não restavam dúvidas era que um dos animais, se não tivesse morrido, se encontraria ferido.
- Era, pois. Não viu o brilho dos olhos? Aquilo é leão de certeza!
- Desconfio que não. Mas amanhã veremos.
- Chefe, e a cabra?
Nunca mais se haviam lembrado dela, após as peripécias subsequentes. Mas eram quase dez da noite e o acampamento ainda estava distante. Nem se preocuparam em localizá-la.
De manhã cedo, rumaram novamente ao Metache, em busca de vestígios.
- “Cajama”- diz um dos indígenas. Era como se referiam aos leopardos.
Nenhuma marca de sangue. Desiludidos, dispostos a voltar ao acampamento, acabaram por dar com o local onde um bicho tinha caído e se havia contorcido.
- Aqui!- grita António, chamando os companheiros.
- Opá! Cuidado! Pode não ter morrido…
- Vivo ou morto, não deve estar longe.
Iniciava-se, em plena luz do dia, o momento mais perigoso: o de procurar uma fera ferida.
Precavido para o que desse e viesse, António avançou com os restantes homens, com uma bala na câmara.
Uma dezena de metros percorridos, ouviram um leve ruído no capim alto. Continuaram avançando, cautelosamente. De novo, o mesmo barulho, quase localizado. Tirando partido da cor da sua pelagem, que se confundia com a terra africana, o animal pretendia esconder-se. Mas foi avistado por um dos indígenas. O perigo mantinha-se e António necessitava ainda de ver o leopardo. Concentrava agora nessa missão todo o seu esforço. Subiam as pulsações enquanto o suor escorria pela sua fronte. Sentidos em alerta máximo. Era a vida que estava em jogo.
Quando, finalmente, os seus olhos se cruzaram com os da fera, um fortíssimo urro, que ecoou na selva e arrasou os nervos de todos, saiu da boca escancarada do animal, acompanhado de um querer mover-se rapidamente na direcção em que os caçadores se encontravam, no preciso momento em que uma bala lhe atravessava o tórax.
Mas o animal tinha ainda vida e erguia a cabeça.
Terceira bala, no pescoço, deu por findos os seus dias de vida.
Enquanto os pretos olhavam para António, a alegria visível nos seus rostos, este sentia ainda presente o rugido pesado e cavernoso que pela primeira vez ouvira. Aos seus sorrisos, respondeu com outro sorriso, o mais amarelo de sempre.
Acercaram-se do corpo inerte e concluíram que o primeiro tiro, o da véspera à noite, havia despedaçado o quadril do leopardo, imobilizando-o. O animal, com dois metros de comprimento e cabeça grande, redonda, impressionava, apesar de morto.
Só depois de trazido o troféu para o acampamento, e após se ter feito fotografar junto dele, é que conseguiu, finalmente, sentir-se contentíssimo, ultrapassada a primeira prova de nervos.

Inacreditável, como anos antes nunca lhe passaria sequer pela ideia vir alguma vez a estar próximo de um leopardo e agora, não só vivia no território destes, como conseguira caçar um.
Animal tão belo quanto cruel, era ainda mais terrível que o leão ou o tigre, dada a agilidade com que se deslocava, saltava ou trepava.
O leopardo, ou onça, não mata para satisfazer necessidades alimentares, como o leão. O seu instinto sanguinário leva-o a matar pelo prazer de matar.
(…)

27 comentários:

Alexandre disse...

Bom, tenho uma grande responsabilidade por ser o primeiro a comentar!

E posso acrescentar que fiquei preso à tua prosa do primeiro ao último parágrafo. Parece - e é - um trecho de um livro documental, muito bem descrito - ao pormenor, parece até que «consegui» ver as paisagens e o ambiente - com uns diálogos elucidativos e metidos no sítio e no memoneto certo.

Eu já sabia que escrevias - escreves - muito bem, mas conseguiste surpreender-me com este texto! Espero sinceramente que este seja apenas o ponto de partida para uma obra completa porque... o que estás a contar, se não contares, ninguém contará!

Muitos beijinhos!!!!!!!!!

vieira calado disse...

O texto é muito bom.
Além disso, aprendi algumas coisas.
Nunca estive em África.
Obrigado.

Filoxera disse...

A Vieira Calado:
Eu não passei do Norte de África: Marrocos e Tunísia.
Mas tenho andado mergulhada em memórias, cartas, fotos, filmes e documentos que me ligam a este tio de quem me desencontrei, para grande pena minha, por desfasamento de alguns anos.
Beijinhos.

Isamar disse...

Amiga Querida

Não li o post todo.Hoje, estou muito cansada mas , amanhã, voltarei para ler. Agora vou tomar o rumo da caminha.

Beijinhossss mil

A OUTRA disse...

Filoxera, obrigada o seu comentário ao meu vigilante, ou guardião como lhe chama, há imenso tempo que o queria fotografar mas não conseguia, porque estava sempre gente nas janelas que forçosamente apanharia e não podia fazê-lo.
Tirei-lhe 3 fotografias, uma delas está no Olhares, mas essa não teve qualquer comentário, até porque devem pensar que faz parte do prédio como decoração.
A outra, para mim é melhor que esta e melhor que aquela que está no Olhares, pela posição, mais atento.
Li o que publicou. Não me impressionou e calculo que saiba porquê.
Continue, mas não se esqueça de ler nas entrelinhas. Essas têm de ser bem estudadas, porque nem sempre se conta a verdade tal como ela é.
Beijos para so e boa sorte.
Maria

pikenatonta disse...

Passei para agradecer as visitas no meu blog e para deixar muitos beijinhos! :)

Meg disse...

Filoxera, África minha! Sempre, desde sempre, mas ultimamente é outra África, de que nunca ouvi falar quando lá vivi, e foi a vida quase toda.
Se estiveres com capacidade para levares um "valente abanão"... aparece, que não é especulação!

Um abraço

Outonodesconhecido disse...

O leopardo, ou onça, não mata para satisfazer necessidades alimentares, como o leão. O seu instinto sanguinário leva-o a matar pelo prazer de matar.
Não sei se é verdade para os animais mas para o homem é-o de certeza.E é uma pena...
boa noite

Carminda Pinho disse...

Amiga,
apenas li a tua introdução ao texto que escreveste.
Já "conhecia" o teu tio de um outro post...
Passo mais logo para ler com atenção.

Beijos

BlueVelvet disse...

Querida amiga,
nunca tive dúvidas àcerca da qualidade da tua forma de escrever.
Tinha curiosidade de ver como te sairias numa história assim: e saiste-te bem demais, porque odiei...LOL
Não te assustes. Eu explico: é que odeio tudo quanto se relacione com caça, e o teu relato está tão vivo que vi cada cena.
Fiquei arrepiada, nervosa, com medo e por fim, com pena do pobre animal.
Vai em frente.
Beijinhos e veludinhos

Isamar disse...

Querida Amiga!

Parabéns! Pela qualidade da escrita! Emocionei-me, parei, avancei, revoltei-me... parecia estar a acompanhar o teu tio e restantes homens. E não gosto sequer de ouvir falar de caça! Mas fiz-lhes companhia. Estava do lado dos homens, para os ajudar, estava do lado do animal para o socorrer e deixá-lo fugir.
Conseguiste captar a minha atenção e mais houvesse mais lia.
Desde sempre, achei que escreves muito bem e consegues fazê-lo cada vez melhor.Não hesites em continuar. Creio que ainda vamos ouvir falar de ti fora da blogosfera.
Continua a escrever com temperatura porque não me cansarei de te ler.Ninguém se cansará.

Beijinhossssss

Pena disse...

Linda Amiga:
Uma leitura fascinante de acompanhar. O "suspense" é enorme a cada frase, a cada palavra. A cada letra.
Sensacional!
Como adoro África e os seus peculiares encantos. Nunca lá estive, mas agora, foi como lá sempre tivesse estado.
Narrativa soberba de delícia, talento.
Uma escrita poderosa e majistral.
Parabéns sinceros. Gostei muito de ler, creia.
Beijinhos de pasmo e maravilha.
Com estima e respeito.
O Amigo de sempre

pena

Escreve com genialidade, acredite?

Filoxera disse...

Alexandre, Blue, Sophiamar, Pena:
Obrigada pelas vossas palavras. A vossa consideração é o melhor estímulo que posso ter.
Um abraço forte, do coração.

Anónimo disse...

Um texto absolutamente fantástico de um país com muitas histórias para contar.

Um beijo

Anónimo disse...

vim deixar um beijinho e votos de um bom fim de semana

António Inglês disse...

Boa noite Filoxera

Nunca estive em África e não sei como me sentiria numa situação destas.
A descrição é excelente e vivi-a à medida que a ia lendo.
Gostei bastante.
Desejo um óptimo domingo
António

Anónimo disse...

Vim desejar uma boa semana
Bjocas

O Profeta disse...

Esta é a alma que voa de um Profeta
Ao encontro do teu sentimento
Este é o sal de alva espuma
Que te ofereço e diadema de espanto…

Olhos de alma, da tua alma
Quero-os no cais da minha chegada
Espero por ti em manto de ternura
No encontro da minha caminhada


Bom domingo

Mágico beijo

Oliver Pickwick disse...

Uma história de suspense, prende a atenção até o fim.
Muitos anos de Discovery Channel e National Geographic, me permite contestar que não há procedência na afirmação de que o "instinto sanguinário do leopardo leva-o a matar pelo prazer de matar". Isto não existe nos animais. Exceto por fome, eles só atacam para se defenderem.

Beijos!

Isamar disse...

Amiga Linda

Passei para te deixar um abraço apertadinho e muitos beijinhos. Para ti e meninos.

Unknown disse...

Já te disse mais do que uma vez : estou à espera do livro autografado !

Parabéns ! Escreves muito bem !

Parece que estavas em Angola em 1950 ! Eheheh !!

Unknown disse...

...en plêno desacordo kom o ultimo paràgrafoooo. o léopardo nã vái prà city in the nigth, matar pour instinto. imagine alguém aposentar-se en sua casa, espantando a sua comida, ESGRAVATANDO o seu leito, apropriar-se da péle d'alguns dos seus, et j'en passe... o animal apenas defende com as suas armas, força fisica, contràriamente ao HOMEM, o território pelo kual lutou kom os seus kongéneros, e nã até à morte, komo o HOMEM FAZ, e estipolou fronteiras k nã são rconheciveis ao INTELIGENTISSIMO E NARCISICO HOMEM. KUANDO É KO HOMEM VAI ENFIM TENTAR KOMPREENDER OS OUTROS SERES VIVOS, OU APENAS A NATUREZA KU ENVOLVE???
Separar o trigo do jôio!?
:--:
En kontra partida, a narrativa tà muita fixe. parabéns

bluegirl disse...

Olá Sofia,
Só "cá" vim hoje e ainda só li este texto sobre a "caçada do tio", que não pode ficar sem comenário, desde logo pela qualidade da escrita. Parabéns. Voltarei em breve (agora são boas horas de ir dormir). Beijinhos. bluegirl.

Braulio Pereira disse...

olá amiga

gostei de ler eu estive em Angola

em cabo verde e em sao tomé

conheço bem africa ..
quantas vivencias tenho para contar de africa..

beijinhos!!

Elvira Carvalho disse...

Sei que já tinha lido este conto apesar de não ver aqui o meu comentário. Reli-o hoje. É um conto muito interessante e muito bem escrito. Meu marido diz que matou um leão que andava rondando o acampamento no Lungué-Bungo em 67.
Um abraço

João Rosário Matos disse...

“Só depois de trazido o troféu para o acampamento, e após se ter feito fotografar junto dele, é que conseguiu, finalmente, sentir-se contentíssimo, ultrapassada a primeira prova de nervos."
Sofia, eis aqui um verdadeiro retrato da selva africana!
Neste pequeno excerto da tua expedição (mental) levas-nos a mergulhar na tua aventura, como se assistíssemos a um filme, num daqueles momentos, de cortar a respiração…
Que esta pequena e belíssima narrativa venha a ser uma página de um grande e fascinante livro!
Parabéns!

Luz Santos disse...

Realmente o "homem" que viveu esta história, escrevia muito bem.
Ainda hoje gosto de ler as cartas dele!
Mas a vida é traiçoeira. Hoje há alguém muito importante naquele país que se devia curvar só de ouvir o nome dele. E a senhora sabe bem porquê.
Não se chamava António... isso não. Mas isso há muito que não importa.
Tanto faz ser António, Manuel, João, o que conta foi a honestidade dele, que falta a muita gente. O amor que tinha á família, e como sabe... o que sofreu.
Tive prazer em visitar o seu Blogue, que me chamou a atenção como há muitos anos não chamava!
O homem que escreveu essa história verdadeira, um pouco alterada por si, era demasiado honesto,
Eu sou uma testemunha ainda viva.
Procurei durante anos o nome da Rua onde passava férias em Lagos, não queria perguntar a ninguém da-
queles que o conheceram.
Foi precisamente um envelope escrito por ele e dirigido a mim, que não chegou a ser enviado, e sei bem porquê, chegou á pouco tempo ás minhas mãos, que me fez descobrir a casa onde tantas tardes, em conversas amenas, ouvi contar peripécias de África.
Divirta-se se isso lhe apraz, com histórias do passado que não conheceu, idealizando aquilo que imagina, mas não pode ter a certeza, porque cada ser é diferente da imagem que, normalmente, criamos a seu respeito.
Não lhe escrevo mais e muito teria para lhe contar, mas não sou poeta nem escritora, sou uma mulher que amou viveu e ainda vive com boas e más recordações.
Tente ser feliz...

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