Fez ontem sessenta anos que Deolinda morreu.
Cresceu na Sobreira, perto do Porto, numa família numerosa, onde apenas a última filha, adoptada, foi à escola. Os restantes dez foram ajuda nos trabalhos de campo e domésticos dos pais.
Não sei muito sobre a sua vida. Sei que aos 23 anos, quando casou, trabalhava como ama dum menino num palacete na Foz, no Porto. O casamento, bichanaram-me recentemente, parece ter sido arranjado pelos patrões. Deolinda casou com outro empregado da família e tiveram um filho, que os patrões apadrinharam, e uma filha, com menos de dois anos de diferença.
Quando estes eram crianças, o peso da autoridade do marido fez-se sentir. Mas ela não era mulher para se encolher. Injustiçada e indignada, pegou nas crianças e saiu. Num tempo em que as mulheres não deixavam os homens, ela saiu. Sem apelo.
Tentou que a zanga do pai dos filhos, despeitado, não se reflectisse sobre estes, mas sem sucesso. As vidas continuaram a decorrer nas proximidades uns dos outros, porém o pai não falaria mais a nenhum dos três.
Como padeira, Deolinda mudou de vida. Moravam numa ilha e distribuía pão às portas das freguesas. Não sabia ler, o que lhe causava desgosto. Mas nas contas ninguém conseguiria enganá-la.
Por vezes levava consigo a filha e a menina recebia guloseimas, que fazia questão de partilhar com o mano.
Era uma mulher de fé. Criou os filhos no cumprimento dos sacramentos. Quando chegou o momento de fazerem a primeira comunhão, a mãe ofereceu um fio a cada um, com um anjo da guarda.
As crianças cresceram ouvindo-a cantarolar as canções da fadista preferida, Amália.
Dos seis netos que viria a ter, só conheceu o primeiro, meu irmão, que ajudou a criar.
Um dia, a doença rasteirou-a. Era ainda nova.
O menino de quem fora ama, então já médico, foi uma das visitas que recebeu no Hospital de Santo António, onde já nada pôde ser feito.
Faleceu com 49 anos. Ontem, que foi o 60º aniversário da sua morte, lembrei-me de partilhar o que sei desta minha avó, a paterna.