03 junho 2008

O Sonho de voar

Hoje, deixo-vos um texto do tempo em que colaborava nos desafios do DN Jovem.
Um artigo com cheiro a mofo, já que data de uma altura em que eu teria mais ou menos metade da idade que tenho.

Corria o ano do Senhor de 1709.
Num dia aparenteente igual a tantos outros -mas só aparentemente- na velha Lisboa joanina, eis que surge, "caído do céu", um engenho peculiar.
Quem primeiro repearou em tal cenário foi um velhote, maltratado pelos muitos anos vividos nesta terra, de parcos recursos mas que, assegurava a populaça, era um filósofo, no sentido não escolástico do termo.

- Ai Jesus, Nossa Senhora, que pássaro vem chegando?
E, com uma apoplexia que se diria queirosiana, não fosse o desfasamento temporal, o seu já fraco corpo estremeceu, tombando imediatamente.
Atraídas pelas suas palavras e divididas entre o auxílio de que o ancião necessitava e o êxtase causado pela contemplação de semelhante criatura ("De Deus ou do Diabo?"- questionavam-se), as pessoas foram-se aproximando do filósofo popular estendido no chão.

Lá em cima, num quase voo piltado por ele próprio, Bartolomeu de Gusmão, um jovem jesuíta, com maior queda (salve seja, pois o voo augurava ser bem sucedido) para a física e a mecânica, dividia os seus pensamentos entre estas e a sua educação religiosa.
"Meu Deus, perdoai-me se estou a desafiar as leis divinas".
Simultaneamente, meditava: "Se Ele nos proporcionou um dia tão claro, tão isento de núvens, não estará, certamente, a condenar o meu invento".

Mas a dúvida permaneceu no seu íntimo, aumentando a cada ligeiro solavanco da Passarola.
"Não. Como poderíamos desfaiar as Suas leis se Ele nos criou sem limites para a nossa capacidade inventiva? Se no-la deu é porque nos permite explorá-la.
Olha, a Sé ali à esquerda! Espero que não seja sacrilégio elevar-me aima dela. Talvez não. Nosso Senhor tem meios para nos repreender. Ter-me-ía segredado o seu descontentamento ou enviado uma trovoada, através de S. Pedro. E esta máquina de voar nada poderia contra uma trovoada..."

Mas, não manifestando a sua ira, Deus mostar-se mais compreensivo que os Inquisidores. esses humanos desumanos tudo farão para impedir que o sucesso desta experiênciaseja divulgado.
Com a bênção divina, a máquina de andar pelo arprossegue viagem, sã e salva, até ao Terreiro do Paço. Aí, entre olhares pasmados e exclamações de "Vem alguém lá dentro!", Bartolomeu prepara-se para "baixar à terra".
- Deus Nosso Senhor me proteja e auxilie...

Quanto mais a Passarola baixava, mais o povo se afastava, reticente.
Dez
Nove
Oito
Sete
Seis
Cinco
Quatro
Três
Dois
Um
Chão!

A máquina de voar tocara o solo com uma leveza angelical. A Inquisiação maldizia o jovem sacerdote, à medida que se preparava para lhe deitar as garras.
Mas teve que continuar aguardando tal momento, dado que El-Rei D. João V acabara de surgir junto da multidão dividida entre aqueles que batiam as palmas e os que faziam o sinal da cruz.
D. João V congratulou Bartolomeu e nem os todo-poderosos Inquisidores, que mandavam para a fogueira milhares de pessoas por dá-cá-aquela-palha, lograram abafar o estrondoso primeiro sucesso da aviação, protagonizado pelo português Bartolomeu de Gusmão e retratado em inúmeros livros, uma ópera, um painel no aeroporto da cidade onde a experiência teve lugar...

13 comentários:

Alexandre disse...

DN JOVEM, que saudade! Também fui colaborador regular nos anos 80 - pois, sou mais velho que tu, heheheh!

Houve uma vez em que ganhei com um pequeno texto e na altura eles ofereciam uma assinatura anual do jornal aos vencedores - depois acho que o deixaram de o fazer - então, era papel todos os dias por todo o lado - acho que isso contribuiu para a minha entrada para Comunicação Social - o bichinho do jornalismo começou a roer e agradeço aos «deuses» por isso!

Muitos beijinhos, Filoxera!!!

Meg disse...

Filoxera,

Estes são os papeis que vale a pena guardar, são pedaços de vida, memórias. Este artigo deve ter sido um "acontecimento".
Como diz a pessoa que comentou anteriormente, pode ter uma importância até decisora de uma carreira futura.

Um abraço

Anónimo disse...

Gostei muito!
Ainda bem que o trouxeste até nós, passados esses anos. Merece de facto ser lido.

Bjs

Patti disse...

Que engraçado!
E deve ser giro entrares em comparação com o que escreves actualmente.

amigona avó e a neta princesa disse...

A saudade anda por aqui...beijos...

Delfim Peixoto disse...

Boto acima

ANTONIO SARAMAGO disse...

Doce beijo no teu coração é só o que posso dar por agora.

jo ra tone disse...

Grande experiência esta
Nós portugueses somos cá uns inventores!!!
Bom recordar estes acontecimentos
Bjo

Elvira Carvalho disse...

Engraçado, que eu custumava "devorar" literaturalmente falando esses folhas do DN JOVEM. Muito interessante o texto.
Um abraço e bom fim de semana

Pena disse...

Simpática Amiga:
Velhos tempos em que a tecnologia e o progresso começavam a nascer e a renascer assentes na Ciência e no Conhecimento.
Devia ser um evento indescritível.
De pasmar.
Belo por ser inovador. Terrível para as sensibilidades mais retrógadas e descréditas. Entregues à fé e acreditando fielmente no poder Divino.
Difícil de aceitar.
Adorei!
Parabéns sinceros.
Beijinhos de amizade.

pena

Anónimo disse...

Que texto delicioso!Parabéns...

São disse...

É tão giro recordar tempos idos...
Obrigada pela partilha.
Bom fim de semana.

Oliver Pickwick disse...

Os bons textos jamais cheiram a mofo.
Um beijo!

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