A infância, passou-a entre o Algarve natal e o Alentejo, para onde a profisssão itinerante do pai conduziu a família.
O tempo era de escassez de recursos e abundância de artimanhas para dividir o pouco por muitos.
Em casa, a Beatriz era a mais velha de três irmãs. Os pais haviam tido oito filhos, mas as maleitas da época reduziram, logo à partida, a conta para metade. Além das três meninas, restara Alberto, cuja idade o afastava das irmãs no andamento da vida.
Na escola, a professora, rígida e exemplar no que tocava aos antigos modelos de educação, castigava-lhe as mãos, vítimas da falta de compreensão e de capacidades que a profissão deveria espelhar.
Animais domésticos eram sempre uns quantos, chegando um coelho a partilhar as refeições
à mesa. Era animal que se impunha, inclusivé, ao gato da casa. Quando era imperativo demonstrar quem reinava, desatava a bater ruidosamente com as patas, fazendo o gato mostrar num ápice para que queria as patas. Mas já estou a desviar-me da menina da nossa história.
Destemida, via nas cobras do rio uma forma divertida de afugentar as irmãs. Assim, levava-as para casa, pois então. Era vê-las ficarem sitiadas num quarto, apelando, em gritarias aflitas, ao socorro materno! Trepava às árvores, sujava-se na terra e fazia apitos de qualquer ervinha que se exibisse no seu caminho. Assobiava; contudo, não era hostil aos ditames sociais.
Na adolescência, o papel de guardiã da moral fazia com que olhasse de esguelha as amizades masculinas das irmãs, coisa sempre considerada vigiável, se não mesmo censurável, no Alentejo de então.
A ambição de continuar a estudar, para vir a ser enfermeia, ficou, também, refém dessa moral anquilosada que estipulava a enfermagem como pouco recomendável para futuro profissional das jovens. Foi assim que a Beatriz viu o seu sonho ser cancelado, a sua ambição frustrada. Sempre dinâmica, era obrigada a estacar perante as convenções sociais. A carreira acabaria por se desenhar com linhas, presas em tecidos como a sua vida, presa às deslocações pelo país fora, ao serviço de uma empresa fabricante de máquinas de costura. Não ensinava apenas o corte e a costura; lançava também as suas alunas na magia criativa da beleza dos bordados à máquina.
Desses tempos, ficaram amizades ou lembranças delas. E muitas, muitas histórias...
Décadas decorridas sobre esta vida itinerante, ainda tentou cativar-me para o pedal da costura, mas, por falta de entusiasmo meu e não de vocação sua, continuo leiga nesta matéria...
Outros empregos passaram pela sua vida, outros acontecimentos a marcaram.
Pela inexorável mão do tempo ou do azar, perdeu a mãe e, anos mais tarde, o irmão quase-herói. Dilaceradas, Beatriz e a irmã mais nova tentam encontrar as melhores frases para desferir no pai o golpe da perda do filho. Mas, ultrapassada a dor impotente, Pedro ainda encontraria forças para enfrentar, e vencer, uma doença de mau presságio.
Partiria, também ele, anos mais tarde, pouco antes da minha chegada a este mundo. Já não tive tempo de conhecer este avô, mas a tia Beatriz é âncora de qualidade incomparável no meu percurso de vida.
Os resquícios do seu temperamento traquina de menina ecoaram na forma como contrariava os cuidados com que o meu pai me alertava para os perigos deste salto em altura ou do contacto com aquele animal indomesticável. Aliás, é convicção familiar que o seu papel é, precisamente, o de fazer com que as crianças percam os medos. Como a subtileza com que foi insinuando o contacto desconfiado do meu filho com o mar.
Nos fins-de-semana na casa desta tia, que entretanto perdera também o amor da sua vida, o banho era de "emergência" (que eu assim designava por confusão com "imersão"), o tempo era de descoberta e os programas variavam entre o passeio em quatro rodas (que os meus pais não podiam proporcionar-me), uma ou outra sessão de cinema infantil como a Annie, e, numa fase mais adiantada no tempo, o madrugar para ir para a quinta, lá para a Azambuja.
À noite, a cama recebia esta ocupante em ponto pequeno, assustada, de início, com as costumeiras lesmas e osgas que habitavam com frequência o quarto.
As favas foram-me impingidas à revelia, mas no que tocava a gemadas tive de me impôr: nada de misturas, só gema, purinha com açúcar.
E havia a imagem do anjo-da-guarda à cabeceira, o galo a anunciar o dia, os troféus africanos trazidos pelo meu tio, que ainda dão à casa o seu tom de originalidade museológica.
Impelida pela curiosidade e pelo espírito da descoberta, percorreu a Europa em autopulman e de avião, vindo, mais tarde, a expandir o seu percurso viajante para outros continentes. Sem falar inglês nem francês.
Aos treze anos acompanhei-a numa pequena excursão a Marrocos, aos catorze fomos passar uma semana de férias a Benidorm, moda estival da época.
Foi mais ou menos por estes anos que a minha tia me deixou começar a experimentar a sensação de conduzir, sempre em locais onde a segurança não ficasse hipotecada.
Um dia, foi ela quem me ofereceu a carta de condução e me deixava guiar sempre que estávamos juntas, com uma confiança inabalável; o meu pai chegou, um dia, a encolher-se no banco de trás, num daqueles dias em que todo o céu era não azul, mas água. As estradas, rios. E ela ali, no "lugar do morto", o seu carro nas mãos de uma condutora inexperiente, a não transparecer nada mais que optimismo.
O mesmo optimismo que, finalmente, conseguiu reencontrar neste seu 76º aniversário, comemorado numa reduzida mas agradável reunião familiar, apesar da doença que importunara já pai e irmã e decidira atravessar-lhe agora no seu percurso.
A má notícia arrumada numa estante, juntamente com as relíquias testemunhas de outras vidas. Os tratamentos, tão frequentes e tão frescos, vencidos pela personalidade duma mulher que foi aprendendo a adaptar-se às circusntâncias que a vida lhe foi apresentando.
Voltou a ser a minha tia, a dos arranjos milagrosos nas calças do meu filho, que, outras mães se veriam tentadas a mandar para o lixo.
A que responde sempre que está bem, preocupada em não nos trazer inquietações.
A que, nas reuniões familiares, traz sempre aquilo que se comprometeu em trazer e mais algumas coisas, de que se lembrou entretanto.
A que é frontal comigo, mesmo quando isso implica desacordo, tal como eu sou com ela. Porque somos assim, diferentes e parecidas. Impulsivas, intempestivas, transparentes reciprocamente. E adoramo-nos, o que se sobrepõe a quaisquer minutos ou horas de esgrima verbal.
13 comentários:
Há tias que não esquecemos. Eu tive uma assim. Tão diferente e tão parecida. Já falei nela no meu blog. A Flô. Deixo aqui os parabéns à tua tia e à sobrinha por escrever tão bem.
Mil beijinhos e bom Natal.
Que bom termos estas recordações.
Eu também tive uma tia assim.
Um dia ainda escrevo sobre ela.
Parabéns à tia e claro à sobrinha.
Muitos beijinhos
PS: A mim também me impingiam as favas e lá as engolia.
Mas gemadas, bah...nem pensar:)
Esta tia é sem dúvida especial. Ouvir as suas histórias de viagens é divinal: Argentina, Pantanal, Russia, etc,etc...
Ouvir as suas histórias de vida também.
Cozinha muito bem (falo ou meslhor escrevo com conhecimento de causa).
Mesmo no momento nemos fácial que atravessa continua a ser uma senhora de imensa força.
Parabéns tia!!!
Para ti que me visitaste
Ao longo destes poucos meses
Ofereço-te uma prenda singela
Uma estrela de mil cores
Roubei-a ao firmamento
Deposito-a na tua mão
Para que neste Natal
Te ilumine o coração
Um Santo e Mágico Natal
Doce beijo
Minha Amiga:
Um texto puro. Terno. Sensível.
Encantador.
Excelente porque vi nele uma enorme beleza de atitudes e sentimentos.
Memórias de tempos atrás que arrebatam. Conquistam. Cativam.
Parabéns! Á Tia e à adorável sobrinha que escreve deliciosamente.
Um Santo Natal e um enorme Ano NOvo de 2008. Que tragam felicidade e bem-estar.
É o que lhe desejo.
Beijinhos amigos de ternura e encanto
pena
Agredeci-lhe no meu blog o seu comentário esquecendo-me que continuava no meu. Desculpe.
Beatriz, ontem falei com ela e gostei tanto!
Tanta recordação eu tenho!... Que belo retrato fez dela!
Foi por ela que tudo começou.
Lá vem chuva, desculpe.
Beijos
Há pessoas assim. Nasceram para marcar a vida de familiares, e outros. Benção divina, você tem em tê-la tido ao longo da vida.
UM ABRAÇO, BOM NATAL E QUE 2008, SEJA A CONCRETIZAÇÃO DOS SEUS SONHOS
A minha mensagem muito especial...
Esta mensagem não é para aqueles de quem me lembrei, mas para aqueles que pretendo NUNCA esquecer! Um NATAL cheio de PAZ e muita SAÚDE!
Boas Festas e um abraço muito especial.
José Gomes
Bonita história e homenagem à tua tia.
Desejo-te um Natal com tudo de bom e que te faça verdadeiramente feliz!
Beijo grande
Sou tia e procuro ser uma boa tia.
Adoro os meus sobrinhos e sei que eles gostam de mim.
A tua tia deve estar muito orgulhosa de ti !...Eu estaria!...
Desejos de um Santo e Feliz Natal!
Venho deixar um beijinho e umd esejo d eum feliz e santo natal para ti e para a tua familia!!
Tiago'
Que bom ter uma tia assim, quem me dera que as minhas sobrinhas me vissem assim...
Mas elas estão mais preocupadas com outras coisas.
Bjos e feliz Natal
Vim deixar votos de Feliz Natal ao Blog...
A ti, dou-te depois.
Beijinhos
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