20 dezembro 2007

Parabéns, Tia!

A infância, passou-a entre o Algarve natal e o Alentejo, para onde a profisssão itinerante do pai conduziu a família.
O tempo era de escassez de recursos e abundância de artimanhas para dividir o pouco por muitos.
Em casa, a Beatriz era a mais velha de três irmãs. Os pais haviam tido oito filhos, mas as maleitas da época reduziram, logo à partida, a conta para metade. Além das três meninas, restara Alberto, cuja idade o afastava das irmãs no andamento da vida.
Na escola, a professora, rígida e exemplar no que tocava aos antigos modelos de educação, castigava-lhe as mãos, vítimas da falta de compreensão e de capacidades que a profissão deveria espelhar.
Animais domésticos eram sempre uns quantos, chegando um coelho a partilhar as refeições
à mesa. Era animal que se impunha, inclusivé, ao gato da casa. Quando era imperativo demonstrar quem reinava, desatava a bater ruidosamente com as patas, fazendo o gato mostrar num ápice para que queria as patas. Mas já estou a desviar-me da menina da nossa história.
Destemida, via nas cobras do rio uma forma divertida de afugentar as irmãs. Assim, levava-as para casa, pois então. Era vê-las ficarem sitiadas num quarto, apelando, em gritarias aflitas, ao socorro materno! Trepava às árvores, sujava-se na terra e fazia apitos de qualquer ervinha que se exibisse no seu caminho. Assobiava; contudo, não era hostil aos ditames sociais.
Na adolescência, o papel de guardiã da moral fazia com que olhasse de esguelha as amizades masculinas das irmãs, coisa sempre considerada vigiável, se não mesmo censurável, no Alentejo de então.
A ambição de continuar a estudar, para vir a ser enfermeia, ficou, também, refém dessa moral anquilosada que estipulava a enfermagem como pouco recomendável para futuro profissional das jovens. Foi assim que a Beatriz viu o seu sonho ser cancelado, a sua ambição frustrada. Sempre dinâmica, era obrigada a estacar perante as convenções sociais. A carreira acabaria por se desenhar com linhas, presas em tecidos como a sua vida, presa às deslocações pelo país fora, ao serviço de uma empresa fabricante de máquinas de costura. Não ensinava apenas o corte e a costura; lançava também as suas alunas na magia criativa da beleza dos bordados à máquina.
Desses tempos, ficaram amizades ou lembranças delas. E muitas, muitas histórias...
Décadas decorridas sobre esta vida itinerante, ainda tentou cativar-me para o pedal da costura, mas, por falta de entusiasmo meu e não de vocação sua, continuo leiga nesta matéria...
Outros empregos passaram pela sua vida, outros acontecimentos a marcaram.
Pela inexorável mão do tempo ou do azar, perdeu a mãe e, anos mais tarde, o irmão quase-herói. Dilaceradas, Beatriz e a irmã mais nova tentam encontrar as melhores frases para desferir no pai o golpe da perda do filho. Mas, ultrapassada a dor impotente, Pedro ainda encontraria forças para enfrentar, e vencer, uma doença de mau presságio.
Partiria, também ele, anos mais tarde, pouco antes da minha chegada a este mundo. Já não tive tempo de conhecer este avô, mas a tia Beatriz é âncora de qualidade incomparável no meu percurso de vida.
Os resquícios do seu temperamento traquina de menina ecoaram na forma como contrariava os cuidados com que o meu pai me alertava para os perigos deste salto em altura ou do contacto com aquele animal indomesticável. Aliás, é convicção familiar que o seu papel é, precisamente, o de fazer com que as crianças percam os medos. Como a subtileza com que foi insinuando o contacto desconfiado do meu filho com o mar.
Nos fins-de-semana na casa desta tia, que entretanto perdera também o amor da sua vida, o banho era de "emergência" (que eu assim designava por confusão com "imersão"), o tempo era de descoberta e os programas variavam entre o passeio em quatro rodas (que os meus pais não podiam proporcionar-me), uma ou outra sessão de cinema infantil como a Annie, e, numa fase mais adiantada no tempo, o madrugar para ir para a quinta, lá para a Azambuja.
À noite, a cama recebia esta ocupante em ponto pequeno, assustada, de início, com as costumeiras lesmas e osgas que habitavam com frequência o quarto.
As favas foram-me impingidas à revelia, mas no que tocava a gemadas tive de me impôr: nada de misturas, só gema, purinha com açúcar.
E havia a imagem do anjo-da-guarda à cabeceira, o galo a anunciar o dia, os troféus africanos trazidos pelo meu tio, que ainda dão à casa o seu tom de originalidade museológica.
Impelida pela curiosidade e pelo espírito da descoberta, percorreu a Europa em autopulman e de avião, vindo, mais tarde, a expandir o seu percurso viajante para outros continentes. Sem falar inglês nem francês.
Aos treze anos acompanhei-a numa pequena excursão a Marrocos, aos catorze fomos passar uma semana de férias a Benidorm, moda estival da época.
Foi mais ou menos por estes anos que a minha tia me deixou começar a experimentar a sensação de conduzir, sempre em locais onde a segurança não ficasse hipotecada.
Um dia, foi ela quem me ofereceu a carta de condução e me deixava guiar sempre que estávamos juntas, com uma confiança inabalável; o meu pai chegou, um dia, a encolher-se no banco de trás, num daqueles dias em que todo o céu era não azul, mas água. As estradas, rios. E ela ali, no "lugar do morto", o seu carro nas mãos de uma condutora inexperiente, a não transparecer nada mais que optimismo.
O mesmo optimismo que, finalmente, conseguiu reencontrar neste seu 76º aniversário, comemorado numa reduzida mas agradável reunião familiar, apesar da doença que importunara já pai e irmã e decidira atravessar-lhe agora no seu percurso.
A má notícia arrumada numa estante, juntamente com as relíquias testemunhas de outras vidas. Os tratamentos, tão frequentes e tão frescos, vencidos pela personalidade duma mulher que foi aprendendo a adaptar-se às circusntâncias que a vida lhe foi apresentando.
Voltou a ser a minha tia, a dos arranjos milagrosos nas calças do meu filho, que, outras mães se veriam tentadas a mandar para o lixo.
A que responde sempre que está bem, preocupada em não nos trazer inquietações.
A que, nas reuniões familiares, traz sempre aquilo que se comprometeu em trazer e mais algumas coisas, de que se lembrou entretanto.
A que é frontal comigo, mesmo quando isso implica desacordo, tal como eu sou com ela. Porque somos assim, diferentes e parecidas. Impulsivas, intempestivas, transparentes reciprocamente. E adoramo-nos, o que se sobrepõe a quaisquer minutos ou horas de esgrima verbal.

13 comentários:

Isamar disse...

Há tias que não esquecemos. Eu tive uma assim. Tão diferente e tão parecida. Já falei nela no meu blog. A Flô. Deixo aqui os parabéns à tua tia e à sobrinha por escrever tão bem.
Mil beijinhos e bom Natal.

BlueVelvet disse...

Que bom termos estas recordações.
Eu também tive uma tia assim.
Um dia ainda escrevo sobre ela.
Parabéns à tia e claro à sobrinha.
Muitos beijinhos

PS: A mim também me impingiam as favas e lá as engolia.
Mas gemadas, bah...nem pensar:)

Anónimo disse...

Esta tia é sem dúvida especial. Ouvir as suas histórias de viagens é divinal: Argentina, Pantanal, Russia, etc,etc...
Ouvir as suas histórias de vida também.
Cozinha muito bem (falo ou meslhor escrevo com conhecimento de causa).
Mesmo no momento nemos fácial que atravessa continua a ser uma senhora de imensa força.
Parabéns tia!!!

O Profeta disse...

Para ti que me visitaste
Ao longo destes poucos meses
Ofereço-te uma prenda singela
Uma estrela de mil cores

Roubei-a ao firmamento
Deposito-a na tua mão
Para que neste Natal
Te ilumine o coração

Um Santo e Mágico Natal


Doce beijo

Pena disse...

Minha Amiga:
Um texto puro. Terno. Sensível.
Encantador.
Excelente porque vi nele uma enorme beleza de atitudes e sentimentos.
Memórias de tempos atrás que arrebatam. Conquistam. Cativam.
Parabéns! Á Tia e à adorável sobrinha que escreve deliciosamente.
Um Santo Natal e um enorme Ano NOvo de 2008. Que tragam felicidade e bem-estar.
É o que lhe desejo.
Beijinhos amigos de ternura e encanto

pena

Maria disse...

Agredeci-lhe no meu blog o seu comentário esquecendo-me que continuava no meu. Desculpe.
Beatriz, ontem falei com ela e gostei tanto!
Tanta recordação eu tenho!... Que belo retrato fez dela!
Foi por ela que tudo começou.
Lá vem chuva, desculpe.
Beijos

Elvira Carvalho disse...

Há pessoas assim. Nasceram para marcar a vida de familiares, e outros. Benção divina, você tem em tê-la tido ao longo da vida.


UM ABRAÇO, BOM NATAL E QUE 2008, SEJA A CONCRETIZAÇÃO DOS SEUS SONHOS

Unknown disse...

A minha mensagem muito especial...

Esta mensagem não é para aqueles de quem me lembrei, mas para aqueles que pretendo NUNCA esquecer! Um NATAL cheio de PAZ e muita SAÚDE!

Boas Festas e um abraço muito especial.

José Gomes

Sei que existes disse...

Bonita história e homenagem à tua tia.
Desejo-te um Natal com tudo de bom e que te faça verdadeiramente feliz!
Beijo grande

Marias disse...

Sou tia e procuro ser uma boa tia.
Adoro os meus sobrinhos e sei que eles gostam de mim.
A tua tia deve estar muito orgulhosa de ti !...Eu estaria!...

Desejos de um Santo e Feliz Natal!

Tiago Mendes disse...

Venho deixar um beijinho e umd esejo d eum feliz e santo natal para ti e para a tua familia!!

Tiago'

Jasmim disse...

Que bom ter uma tia assim, quem me dera que as minhas sobrinhas me vissem assim...
Mas elas estão mais preocupadas com outras coisas.
Bjos e feliz Natal

BlueVelvet disse...

Vim deixar votos de Feliz Natal ao Blog...
A ti, dou-te depois.

Beijinhos

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