Hoje, volto a falar-lhes da Doença de Alzheimer. Não na perspectiva de médica ou técnica de saúde, nem de investigadora ou jornalista.
Falo-lhes, como habitualmente, do que vivi, como filha de um doente.
No princípio, era a negação. A minha mãe estranhava os comportamentos, criticava-o por não ir ao médico, já que ouvia tão mal... Quando a resposta se tornou inequívoca de que não se tratava de falta de audição, chamei-a à realidade; ele não podia estar a protelar. Porque respondia "mas nós temos máquina?" quando o informava que a louça que procurava ainda devia estar por retirar da máquina. Ou quando lhe dizia "vê ali pela janela da marquise" e ele ripostava "onde é a marquise?".
Não se pense, como há tendência, que é uma questão de falta de memória progressiva. É muito, muito mais que isso.
Por acaso, eu sabia o que a doença operava numa pessoa. E dava-se a coincidência de ter acabado de me estrear na indústria farmacêutica. O médico que nos dava formação pressentia, tal como eu receava, tratar-se de uma situação de demência.
A vida já fora dura comigo, no que tocava a situações de doença. Mas aproximava-se a confirmação da que eu mais temia.
Quem não conhecesse o meu pai não notaria nada. Só nós, conscientes de que ele já não completava as palavras cruzadas (que habitualmente só punha de lado após resolver até as que requeriam o próprio preenchimento das quadrículas pretas) nem lia o jornal, nos apercebemos.
Nesta primeira fase, o empobrecimento do léxico era também um sinal. E, novamente, apenas para nós. Para os outros, que passavam menos tempo com ele, não era visível. Os cachimbos permaneciam intocados. Aos cigarros, ainda proporcionava passeios, em que não sabia o uso que haveria de dar-lhes.
Tendo dedicado a sua vida aos transportes marítimos, era conhecedor de todos os nomes de portos do mundo. Enquanto eu trabalhava e finalizava a licenciatura em Relações Internacionais, cheguei a dedicar-me ao estudo das matérias teóricas, contando com o resumo diário que o meu inspirador para a vida me fazia acerca do que andamento do planeta.
Um ano depois, apenas 59 anos da sua vida percorridos, desaba sobre nós o rótulo que nos recusávamos a pronunciar: Alzheimer.
Não lho comunicámos, pois de nada valia. Julgo que, nos momentos de lucidez que então ainda tinha, terá desconfiado. Chegou a ter conversas acerca de como a morte, se viesse entretanto, o não perturbaria, porque, dizia, já vivera bastante.
Eu tinha-o levado ao médico. Ele, muito contrariado e receoso (lembrava-se da situação de um vizinho e temia que lhe fizessem "um buraco na cabeça"), apenas anuiu porque o convenci que ia apenas para não me deixar mal vista, já que se tratava de uma consulta difícil de obter. Disse-lhe que queríamos ver como estava o ouvido dele.
Para nós, foi a teatralização das emoções. Dar um tom de normalidade quando tudo ruía.
Era aterrorizador imaginar o futuro. Alzheimer é, desde logo, a depressão de uma família. A dedicação total, que nos envelhece precocemente. É a quase ruptura económica. O luto antes da morte. Um luto que se nos cola à alma para nunca mais a largar.
Para o doente, é a cessação da vida enquanto ainda existe. O doente era o meu pai.
Tudo arrasado: os planos de viajar, ler a restante biblioteca que não pudera enquanto trabalhara (no sector marítimo, a recessão levara-o, como a muitos outros colegas, a pré-reformas um tanto ou quanto forçadas). O livro, cujo título idealizara muitos anos antes.
A partir daí, lamentei cada minuto que passava sem a sua companhia.
E temi o que estaria para vir: o dia em que ele perderia a noção do certo e do errado, do seguro e do perigoso. O dia em que deixaria de controlar os esfíncteres. O dia em que não saberia mais orientar-se na rua, ou mesmo em casa. O dia em que não reconheceria mais a mulher. Ou a filha. O momento em que o equilíbrio lhe faltaria, o momento em que as pernas deixariam de suportar o seu peso. O tempo em que andaria de internamento em internamento, alternando entre infecções respiratórias e infecções urinárias. Ou simplesmente para ser hidratado e nutrido. Porque a doença compromete, também, a capacidade de deglutir. Como todas as restantes.
E todos esses dias e todos esses momentos vieram.
E todas essas etapas nos faziam sentir mais roubadas, mais mergulhadas numa do interminável...
Quantas vezes era ele o doente com aspecto mais frágil de toda uma enfermaria de Neurologia!
Mas vencemos muitas fases, atrasando-as. Levando-o a passear, tentando fazê-lo rir, alimentando-o de acordo com as necessidades e o seu gosto, hidratando-lhe a pele e fazendo-o exercitar músculos e articulações enquanto estava acamado. Chegámos a tirá-lo da situação de acamado, fazendo com que voltasse a andar, e por muito mais tempo.
A minha mãe, lutadora, dava frequentemente o seu testemunho na tv, em dias como este, ou em peditórios.
As hospitalizações eram um retrocesso: não há pessoal hospitalar para se ocupar destes doentes. De modo que são limitados ao uso de fralda, quando, como o meu pai, ainda conseguíamos levá-lo à casa de banho. Regressava com escaras, unhas de quilómetros se não as cortássemos nas visitas. E pouco comeria se não fizéssemos por isso, estando presentes à hora das refeições.
O dia-a-dia, em casa durante a maioria dos anos de evolução da saga, era feito de desorientação, visões, agressividade, sapatos guardados em gavetas, dedos enfiados em tomadas ou mergulhados em tachos ao lume. Felizmente, acções logo contrariadas por alguém que se apercebia.
Porque ninguém consegue olhar por uma pessoa assim 24 horas por dia, teve de se recorrer a ajuda exterior. A peso de ouro, evidentemente.
A família e os amigos escassearam. Aqueles que iam lá a casa frequentemente almoçar, passaram a descartar-se com a desculpa de que não suportavam vê-lo assim. Sem pensarem se eu, e sobretudo a minha mãe, que vivia ali sozinha com ele, suportávamos este percurso sem apoio. À excepção da cunhada, minha tia, o meu pai recebeu, nos seus últimos três anos de vida, passados num lar, quatro pessoas que o visitaram pontualmente. Nós, íamos vê-lo diariamente, por vezes combinando uma alternância entre a minha ida e a da minha mãe.
De ambas, ele recebeu todo o suporte e o amor. Médicos elogiaram a forma como conseguimos, em diversas fases, ludibriar a doença.
Não há cura para a dor que nos acompanhará para sempre.
Vi-o definhar, perder a capacidade de reconhecer e de comunicar. Pareceu entender quando, pela segunda vez, lhe disse que estava grávida do meu filho, muitos dias após a primeira tentativa de lho comunicar, que fora uma tentativa gorada.
Ainda dedicou uns carinhos ao neto.
Falhou a contemporaneidade com a neta, nascida poucas semanas após a sua morte. De qualquer forma, não teriam dado pela existência um do outro, cada um na sua ignorância.
Faz hoje 17 meses, uma pneumonia soprou sobre a pluma em que se tornara o meu pai e levou-o para a esfera da eternidade. Ou o que restava dele...
11 comentários:
À sempre experiências na nossa vida tão dolorosas que embora não as esqueçamos, temos que fazer um grande esforço para as ultrapassar e pôr essas experiências ao dispôr de outros que não estão preparados para sa enfrentar. Eu pasei experiências demasiado dolorosas num tempo em que os doentes como minha mãe nem os queriam nos hospitais e só consegui internamento para ela numa Clínica caríssima. Estive ao pé dela do primeiro ao último dia. Isso provocou em mim um pavor que tento refrear.
Com meu pai a cena repetiu-se.
Isso leva-me a repetir o que meu pai me pedia agarrado a mim. "Pede aos médicos que acabem com o meu sofrimento". Quadros inesquecíveis e que me fizeram criar um sentido diferente da vida e da morte.
Todo o ser humano tem direito a viver e morrer com dignidade, tal como deseja e pede.
Esta é a minha maneira de pensar.
Começando neste mês de Setembro até ao fim de Janeiro os dias passam e eu tenho mesmo que não queira e faço por isso, uma cena de horror que me recordo bem.
Mas acabou.
BJ
Minha Querida Amiga
Tu escreves mesmo a quente. Li o teu post com uma atenção diferente da que costumo ler todos os outros. E tudo isto porque enquanto te " ouvia" falar do teu pai, soava-me na cabeça a expressão " a minha mãe" . E o calvário foi igual. Estou a escrever-te comovidíssima porque eu estive em tudo quanto escreveste. Só o neto tinha uma idade diferente.O seu menino foi um dos primeiros a deixar de identificar e vá lá saber-se porquê?Adorava-o. Também as amigas se afastaram. E tinha tantas! Ficavam comovidas, não aguentavam vê-la naquele estado, diziam. Ficou só, com a única filha, o único neto e poucos familiares.Mas teve dos poucos que sempre a acompanharam, o máximo que lhe podíamos dar.
Beijinhos
Passei por aqui e fiquei muitotempo a ler...devagarinho...por força de estarà frente de uma Instituição de idosos sei do que falas...tenho vários assim...acompanho os seus dias, afago a mão que nem sempre sabem onde pôr, preencho os dias quando os familiares não vêm...parabéns pela tua luta...parabéns pelo vosso amor...de todos os casos que acompanhei tive um que me deixou orgulhosa: uma filha que esteve sempre ao lado da mãe - SEMPRE! E connosco fez mais claros os dias da mãe que só sabia dizer: eles com elas!
Tenho muitos utentes que ficam sós de afectos por aqueles que deviam estar ao seu lado.
Por isso obrigada pelo texto que me deste a ler, obrigada por seres como és...boa semana...
Quanta experiência dolorosa temos para contar...
Mas , tal como diz o meu/nosso Povo, "É a Vida!"
E felizes os que conseguem olhar pelos seus mais velhos e fechar-lhes os olhos com amor.
Beijos Amiga e força!
Maria Mamede
Recordo-o muitas vezes nas fotos, com a mariana ao colo, na vossa vinda ao Porto...
A saudade do pai, essa, nunca desaparece...
Olá , menina e moça
Deixei-te um comentário no post saudade.
Os sentimentos são próprios de cada um. Apenas podemos ter uma ideia, pela sensibilidade, pela maneira como são transmitidos ou porque se passou por algo que nos pesa.
Um abraço amigo, embora virtual.
VM
Paralisei por momentos, depois da leitura. Acho mesmo que durante a leitura.
O meu pai tem, há nove anos a doença de Parkinson.
Hoje, agora, não consigo mais do que enviar-te um ABRAÇO, MUITO FORTE.
Maria
Tive que ler e reler este Post.
Muitas vezes parei, comovida.
O meu pai parece um passarinho com uma outra doença, por muitos menosprezada mas que é terrível: diabetes.
Há 8 anos, com a ajuda de um amigo médico e dos netos conseguimos salvar~lhe uma perna que estava em riscos de ser amputada, pé já meio gangrenado.
Desde então a minha mãe passou a enfermeira particular dele.
Dedicou-lhe a vida, abdicando da dela.
Vou-me despedindo dele aos pouquinhos, porque dentro daquele corpinho frágil já não é o meu pai inteiro.
Um abraço.
Um abraço meu!
Obrigada pela visita.
Vou voltar...a este post prometo...nos próximos dias...
Ando desorientada e sem paciência para a net.Começo neste momento a lidar com a agressividade de Laura, minha sogra.
Face a situações assim , não existem palavras ( ou , pelo menos, eu não as tenho) para transmitir o que sinto e, ainda menos , para consolar que vive a tragédia.
Assim, limito-me a abraçar-te carinhosa e solidariamente, agradecendo a DEus nunca ter passado por esta dor.
Há situações que só quem passa por elas consegue dar o devido valor.
Tinha 9 anos quando perdi o meu avô, foi muito doloroso para mim na altura mas, foi uma morte repentina, um problema cardíaco.Nos meus 11 anos a minha avó começou a deixar de reconhecer as pessoas, não fazia nada sozinha, deixou de andar, passava o dia numa cadeira de rodas e tinha que ter sempre o apoio de alguém, esta situação prolongou-se até eu ter 14 anos. Eu adorava os dois, agora olhando para trás a dor é muito mais agonizante quando diariamente se acompanha a degradação de quem amamos, lembro-me de tentar tudo para reconhecer as pessoas, ia buscar fotografias...
Ficava tão feliz nos momentos em que olhava para mim e, eu via nos seus olhos que naquele momento me reconhecia...
Um grande beijo Sofia
Isabel Marques
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