09 julho 2007
Eu sou um quadro, uma tela com um corvo que a avó fez.
Ela disse ao menino que costuma vir cá a casa que me vai oferecer a ele. Mas eu espero que ela se esqueça do que prometeu; vivi sempre aqui, nesta salinha acolhedora, rodeado de outros quadros, caixas e caixinhas, jarras e pratos que a avó faz nos serões.
Fazemos companhia uns aos outros, a sala é linda porque nós lhe transmitimos cor e eu gosto deste ambiente calmo.
Quando o menino chega, há sempre mais movimento e mais barulho. Eu até não me importo, mas não me apetece nada separar-me dos meus amigos e dos meus irmãos, que são quadros da mesma colecção. Damos inspiração à avó quando ela precisa de escolher que trabalho há-de fazer e ajudamo-la na escolha das cores. Depois, quando ela vai deitar-se, ainda comentamos, baixinho, uns com os outros, a habilidade que ela tem para estas artes.
A campaínha da porta toca. Quem será?
Olha, é o neto. A mãe trouxe-o para passar a noite com a avó.
Vem eufórico. Salta para a cama da avó e, ainda não acabou de contar a sua brincadeira com um amigo, já está a pedir "qualquer coisa para comer". A avó faz-lhe a vontade, como habitualmente.
A seguir, encaminham-se para a salinha que habito com os meus irmãos e mostra-nos ao menino: "Vês como ficaram os quadros que fiz para ti? Gostas?". Sinto-me vaidoso, pois os olhos do petiz sorriem, num brilho contagiante.
Mas logo entristeço, quando a senhora continua "Amanhã já podes levá-los para a tua casa".
Não, deixa-me ficar, não quero ir embora daqui, insisto, numa voz surda para a nossa criadora.
O menino continua a mirar-nos, encantado, enquanto eu, derrotado, lamento não poder decidir o meu destino.
Porém, a surpresa chega quando a avó começa por envolver um dos meus manos num plástico, daqueles com bolinhas, que miúdos e graúdos tanto gostam de fazer estalar. De seguida, faz o mesmo comigo; depois, é a vez dos restantes irmãos.
Na companhia deles já me sentirei menos perdido, mas como será viver noutra casa?
Pensamentos como este preenchem a minha última noite na casa da minha criadora, aconchegado juntinho aos meus manos, todos dentro do mesmo saco.
Começa um novo dia. O rapazinho, sentindo-se já nosso dono, pega, orgulhoso, no saco para o levar para a sua casa. E lá vamos nós, que nunca antes tínhamos saído de casa, no carro do pai do menino, até à nova morada.
Aqui, a surpresa foi total. E muito agradável: esperava-nos uma parede inteira, onde nos colocaram todos juntos uns aos outros para poderem apreciar a nossa beleza.
À medida que a família e os amigos vêem a nova decoração deste quarto de criança, recebemos mais e mais elogios. Ficamos todos vaidosos!
Cada vez gosto mais da minha nova casa. É bom acompanhar as brincadeiras do meu novo dono e do seu irmãozinho. Muitas cores e cantiguinhas nos embalam nesta nova vida.
E o melhor de tudo é que ganhámos toda esta animação sem perdermos de vista a nossa criadora: a avó vem cá muitas vezes brincar com os netos, e deita-nos sempre um olhar carinhoso...
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2 comentários:
Que doce beleza, Amiga A.Filoxera, neste pequeno "conto", cheiínho de ternura...
Muito obrigada por no-lo dar a conhecer.
Beijos da
Maria Mamede
Só hoje, depois de mais calma, com a cabeça mais no lugar, tendo sacudido algumas das teias de aranha daquelas que conhecemos, e os olhos mais abertos para o que rodeava este lugar, vi com olhos de ver e não só de olhar, a ternura duma avó amiga e dum neto doce.
Quem me dera ter um neto como tanto desejei!
Cada um é para o que nasce e hoje vejo nitidamente para o que nasci.
Beijinhos
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