23 março 2008

Domingo de Páscoa


A Páscoa é uma época que me suscita grande nostalgia.
A partir dos cinco anos, passei as férias da Páscoa todas no Porto. Ou melhor, em Gueifães, na casa dos meus tios. Ali, deixava de me sentir filha única (pois o meu irmão nunca viveu comigo) e diluía-me no meio de quatro primos e mais uma série de primos dos primos, que viviam nas casas seguintes.
Os dias eram de brincadeira. Começavam com o galo a cantarolar e acabavam com jogos, risotas e tropelias.
Mais crescida, até à noite íamos aqui ou ali, nas redondezas. E comecei a ir passar o dia ao Porto, na companhia do meu irmão, cunhada e sobrinhos, apanhando a boleia dos meus tios de manhã ou, ocasionalmente, de autocarro, mais para o meio do dia.
Familiarizei-me com a Cidade Invicta muito antes de me aventurar sozinha por Lisboa, onde nasci. Rumava à casa do meu irmão, onde havia sempre um novo bebé. Pararam no oitavo. E eram reencontros e conversas que repetia ao longo dos quinze dias de férias, mas que sabiam sempre a pouco.
Perto do Domingo de Páscoa, a minha tia, sempre atarefada na sua profissionalíssima maneira de ser, lá conseguia subtrair-se à azáfama da sua loja de modas no início da Rua de Cedofeita, para ir comigo e com os meus quatro primos comprar toilletes novas. Era um momento mágico para mim! Roupa nova, ainda por cima comprada na companhia da primalhada... Como era bom sentir-me mais uma no meio de muitos!
Os serões eram, frequentemente, preenchidos com séries televisivas pascais, de carácter épico que nos retinham a atenção.
Ao Domingo, Gueifães palpitava na iminência da chegada do compasso a cada uma das casas das redondezas. E nós íamos recebê-lo numa e noutra casa, sempre ansiosos por participar no ritual do beijar da cruz e da conversa e lanchinho que se seguiam.
Mais permeável à influência ateia do meu pai que ao espírito católico da sua irmã, acompanhava, porém, de bom grado os meus tios e primos à missa. Tal como a minha tia, também o meu pai fizera todas as comunhões e liturgias católicas, mas, em adulto, rebelara-se contra os ensinamentos da infância. Eu bebi da influência dum e de outro, irmãos perfeitamente antagónicos na fé e na política, tanto quanto eram amigos no peito.
Hoje, a Páscoa apartada da família do Porto parece-me oca. Faltam-me as minhas âncoras: o meu primo da minha idade, o que mais brincava comigo e que andou comigo a apanhar rãs numa Páscoa na Sobreira, a minha prima, a mais velha, a das conversas cúmplices pela noite dentro enquanto não vinha o sono, o meu primo mais velho que um dia, do alto dos seus dez anos me mostrou como conseguia retirar-me uma farpa do dedo sem me magoar, o meu primo do meio que chegou a trocar de papel comigo e ficar na minha casa enquanto eu passava férias na dele. Era o único que se dava ao trabalho de me escrever.
Falta-me o meu tio, sempre bem-disposto, mesmo quando não lhe dávamos tréguas no barulho, a minha tia admirável, o ambiente festivo. O esforço incansável da minha tia para nos presentear com um cabrito assado no forno, um leite-creme como só ela faz, agora lado-a-lado com o pudim francês que o meu tio aprendeu a fazer com mestria há uns anos.
Falta-me a "avó" Dulce e a primalhada toda.
Resta-me a ideia de poder ir passar com eles a próxima Páscoa, quando ambos os meus filhos já apreciarão a tradição do Norte.

10 comentários:

Pena disse...

Vejo que a cidade do Porto a conquistou desde tenra infância.
Vivo a poucos Km de distância da cidade invicta.
Vou lá frequentemente e sinto um especial carinho e delícia por ela.
Vejo que tempos atràs a sua Páscoa vivia de fascínio. Encanto.
A sua narrativa é profunda, sai-lhe da mais pura interioridade, do talento como constrói as palavras sentidas. São doces e, ainda bem, sabe? Estou um pouco fatigado dos infortúnios da vida, embora me toquem, sem poder fazer nada. Desculpe, o desabafo. É sincero.
Oxalá seja feliz como sempre foi. É o que mais lhe desejo.
Escreve maravilhosamente.
Parabéns pelo que é e um sentido reconhecimento e apreço pela visita. OBRIGADO!
Um feliz Dia de Páscoa.
Bj amigos de estima e respeito.
Com imensa consideração

pena

Alexandre disse...

Um pouco como eu: a Pàscoa nada me diz e o Natal e outras festividades também já não têm a importância que tiveram - gosto de estar com a família qd a família está presente de corpo e alma e não apenas para marcar presença.

Tb tenho muitas saudades do tempo de outrora...

Muitos beijinhos!!!

Carminda Pinho disse...

Oh! as Páscoas da nossa infância!
Uns afastam-se pela vida, outros ficaram apenas na nossa memória e no coração.
Mas estes dias continuam a ser mágicos, mais que não seja, pelos filhos...

Beijinhos amiga.

Oliver Pickwick disse...

Ora, Filoxera, sabe muito bem que avós, tios e primos não são para sempre, todos precisamos de outras alternativas capazes de nos proporcionarem idênticas alegrias. Além do mais, os olhos que deslumbravam com as circunstâncias que bem descreveste, por certo já não são os mesmos. Acredito que galos não cantam mais nos quintais da cidade do Porto e de Lisboa.
Precisa avançar para a Páscoa 2.0, assim, não a sentirá como um evento oco.
Beijos!

P.S.: E esse seu irmão, hein? Oito filhos. Não tinha TV naquele tempo?

António Inglês disse...

Filoxera

Como a compreendo... Nem sequer tenho a mesma opinião que aqui já li de que a Páscoa não tem a mesma importância de outrora, ou que sentimos saudades da Páscoa da nossa infância.
Não que não sejam verdadeiras as afirmações. mas porque a Páscoa de antigamente tinha realmente outro sabor e ainda para mais quando ela era sentida e vivida pelo Norte do país.
Só de há dois anos para cá é que deixei de a passar no Minho Litoral, porque de resto sempre por lá corri de casa em casa para receber o "compasso" e beijar a cruz.
A família, os amigos, os sabores, os odores e tudo o mais deixam-nos com a profunda sensação de algo nos falta...
São os tempos e a esses temos de ir procurando a melhor maneira de nos adaptar-mos.
Como a entendo minha amiga...
Um beijinho
António

jo ra tone disse...

Filoxera,

É na verdade um tempo de Páscoa outrora vivida como um pouco por todo o lado.
Eram outros tempos, mais alegres, muito bem descritos neste teu texto.
Boa continuação

Isamar disse...

Querida Amiga

A pouco me sabem sempre as tuas palavras. Se a sua temperatura me toca a pele,o amor e a amizade que perpassam o que tu escreves sensibiliza-me, arrepia-me, emociona-me. Ter-te como amiga é um prazer, um privilégio, uma fortuna.És imperdível!
Mil beijinhosssss

p.s. Amanhã segue prendinha!

Outonodesconhecido disse...

Crescemos e tudo muda, mas graças a deus que temos as recordações...
boa semana

Anónimo disse...

Pois é, prima, descreveste muito bem as nossas Páscoas. À distância tudo parece bem mais sentido e naquele horizonte temporal todos os pormenores eram bastante marcantes e significativos. Não querendo tirar sentido às tuas recordações (que são igualmente as minhas) tudo está bastante diferente. Como passei a viver no Porto, Gueifães, apesar de perto, ganhou a mesma distância para mim que imagino que tu sentes. Como está diferente !! Não te esqueças que era uma aldeia e agora é uma cidade que nem eu reconheço. Do tempo que relataste, das 2 ou 3 cruzes que davam a volta e ainda havia tempo para conversar com eles, já pouco resta... Nesta Páscoa saíram 17 !!! Dezassete !!! Como é bom recordar os tempos... Penso até que é o que de melhor se retira das coisas, a recordar, porque se tentamos viver as coisas novamente, tudo está completamente alterado e adulterado. Ou se calhar não, digo eu. Pelo menos é o que eu sinto. Beijos para todos. E do Porto que são mais repenicados, eh eh eh...

Anónimo disse...

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