14 agosto 2013

O canto dos cucos


Os cucos saltitavam, atarefados na sua cantilena compassada, quando a campainha soou.
Dali, onde se arrumara, sentadinha, a sentir estender-se a tarde, não conseguia enxergar quem, fechando o portão, gerava outro ruído, paralelo ao do ranger suplicante de óleo: o dos pensamentos ansiosos que se faziam ouvir, apenas, no íntimo de cada um. Mas descobria, logo aos primeiros passos que se seguiam ao chiar, a figura que vinha alegrar algum dos contrariados residentes do lar.
Lar, que é como quem diz, armazém. Apesar do bom ambiente, do jardim cuidado, dos espaços amplos, das paredes coloridas e ar respirável, sem aqueles odores típicos de tantos, D. Augusta não tinha dúvidas de que entregava agora os seus dias a um calendário sem dias santos: o calendário dos dias iguais de tantas vidas abandonadas.
Ela, que descobrira aos seis anos o segredo das letras, a magia das contas e, aos dez, vivera a aventura do percurso para a escola dos grandes, iniciava agora a contabilidade dos dias em que a vida a acordava. Ela, que encetara aos vinte o primeiro grande empreendimento da sua vida: o casamento com o cantoneiro Francisco Costa, o Xico da Vila, como era conhecido lá na terra. Aos vinte e um já ninava o Manuel, primeiro de quatro filhos, com canções que lhe embalavam o cansaço da maternidade e da vida caseira. A criançada aumentava de altura na razão directa do aumento das ralações. Havia os livros para a escola do mais velho, a asma do Fernando, a vaidade precoce da Luisinha e as lições que o Hugo nunca guardava, na cabeça de todos os ventos.
E havia os milagres que Augusta fazia com a máquina de costura, nas bainhas que brincavam ao sobe-e-desce enquanto as roupas não esgarçassem, nas novas vidas que o vestuário ganhava com aproveitamentos de tecido. E, claro, os trabalhos no barranco, onde o rio, traiçoeiro, na sua ânsia de grandezas, deitava, ocasionalmente, a perder meses de dedicação, deixando a família sem as couves para a sopa e os ovos para a gemada dos meninos, sorridentes pelo mimo fortuito ao pequeno almoço.
Na aldeia, a vida decorria ao som das quatro estações do clima. Comemoravam-se os aniversários, Páscoas e Natais e choravam-se os anjinhos que a doença levava, quase sempre de conluio com a miséria.
Augusta deslizava sobre os anos acompanhada da mesma desenvoltura com que fora para a primária, o mesmo olhar vivo de quando espreitava Francisco à porta do café central. O único, ali.
Os meninos cresceram. Só o mais velho não lhe deitara netos no regaço. Vivia agora no Algarve. O trabalho era a sua vida. Os do meio também haviam estudado, e muito, que o casal insistira em dar-lhes a melhor preparação para a vida. Mas Fernando estava desempregado havia mais de dois anos. Com três filhos e apenas o vencimento abaixo do visível da nora, visitava a mãe ao ritmo modesto da ajuda dos irmãos. Só Luísa ia resgatá-la aos fins de semana e levar-lhe um sorriso nos outros dias, um miminho doce quando os horários das actividades dos miúdos se deixavam intercalar.
Hugo vivia agora no Canadá. Fora com a promessa de trabalhar na construção e assim o fez. Construiu prédios e família.
Nos dias sem história, Augusta ainda olhava para o televisor, mas não encontrava nele nada que lhe permitisse esquecer, por míseros minutos, o seu Xico e as conversas que nunca lhes haviam faltado. Até o sangue extravasar no cérebro do marido, deixando-o inconsciente, num sono hermético. Três dias. Os necessários para que a família o acarinhasse antes de se enlutar. 
A viuvez trouze-lhe peso ao olhar. Os movimentos demorados demonstravam uma D. Augusta encolhida pelo desgosto e pela idade.
Fintou a saudade com as peripécias infantis que os netos lhe ofereciam. Sorrisos e palavras recuperaram-lhe a expectativa de vida.
Agora, a expectativa alimentava-se dos toques da campainha do lar. A vida eram as visitas e os passeios familiares. E o canto dos cucos. 

6 comentários:

São disse...

Existem por aí tantas Dªs Augustas, desgraçadamente.

Gostei da foto, do texto e da música.

Abraços para ti, rrss

Rafael Humberto Lizarazo Goyeneche disse...

Encantado de conocerte, me han gustado tus blogs y me hago uno más de tus seguidores.

Gracias por visitarme,

un abrazo.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

comovida e triste.
muito bem escrito!
bom fim de semana.
beijo

:)

Braulio Pereira disse...

olá Sofia

excelente. gostei muito.

bom verâo.

beijos.

Unknown disse...

Gostei muito de ler. Eu sou uma moça mais de prosa do que de poesia :)
Beijinhos
Isabel

Sofá Amarelo disse...

Apetece dizer como Carlos do Carmo 'e os dias passam iguais aos dias que vão passando', histórias de vidas onde as vidas não são devidas...

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