
Hoje, deixo-vos um excerto da expedição (mental) em que mergulhei nos últimos tempos, sempre que os imprevistos me dão tréguas... trata-se da experiência de um familiar que partiu em 1948 para Angola, sem conhecer lá ninguém. Viveu e trabalhou na Lunda, num serviço altamente solitário, o da prospecção. Lá faleceu, em 1964, num acidente, vários anos antes de eu nascer. O nome que aqui apresento não corresponde ao seu nome real. O episódio é uma cena de caça.
(…)
O impulso caçador cresce com o tempo. Resiste à cautela, impondo-se.
E com António o crescimento de tal impulso era tanto mais evidente quanto a distância a que ele se encontrava de qualquer vestígio de sociedade. A vida resumia-se à Natureza solitária.
Assim, uma noite dispôs-se a dar uma volta após o jantar, acompanhado por três nativos, à procura de qualquer animal.
Percorridas as primeiras centenas de metros, os uivos dum lobo quebraram a monotonia da noite e o silêncio da marcha. O animal estaria próximo do acampamento, mas do lado Norte do Luconha. Não lhes interessando procurá-lo, continuaram a marcha, já desconfiando que não encontrariam caça, devido aos uivos.
Porém, a quatro quilómetros do acampamento, António foca uma cabra. Avança, aponta, o tiro parte e a cabra parece tombar. Procurando-a, eis que, do outro lado do afluente Metache surgem os olhares de quatro bichos, que tomaram por leões.
Momento quase indescritível, de uma tensão incomparável. Continua a focá-los. Eles quase não se mexem, apenas abanavam as cabeças. Uns segundos de hesitação.
-“Leões!”- exclama um dos homens. O nervosismo cresce.
-“Chicolocoço”- afirmava outro, pretendendo acalmar os companheiros. Chicolocoço era um herbívoro de corpulência semelhante à de um boi pequeno.
- Vamos voltar- pedia o terceiro nativo.
A cor dos olhos que os visavam não deixava dúvidas de que se tratava de feras.
António dividia-se entre a vontade de abater um destes animais e a necessidade de manter intacto o físico.
- Caçamos?- perguntavam os dois primeiros companheiros, em tom de incitamento, enquanto o branco se refazia da excitação e os seus nervos voltavam ao lugar. Já eram três a querer dar luta aos animais.
Estavam ainda distantes daqueles, separados por alguns cento e cinquenta metros. Duvidando que se tratasse de leões, mas querendo certificar-se do perigo que indiciava a presença de feras de grande porte, António apontou e disparou. Os bichos moveram-se, mas não fugiram. De novo os focava, posta de parte a hipótese de se tratar de animais inofensivos.
A distância não permitia vê-los, apenas se distinguia a o verde forte cintilante dos seus olhos penetrantes. De novo a questão: avançar ou recuar? Optou pela primeira.
Os animais, no mesmo lugar, aguardavam.
E, ainda sem saber que iria atirar, a uns oitenta metros sensivelmente, domina os nervos e reúne a iniciativa necessária para o ataque às feras. O tiro partiu e os olhos de um bicho deixaram de focar, ao mesmo tempo que se notava a bala atingir o animal. Mas ainda restavam três.
Levara apenas oito balas e uma caíra já no chão.
Mas avançou, incauto, até se encontrar a uns quarenta metros dos alvos. Novo tiro. António sentiu-se sem pinga de sangue ao constatar que atingira o mesmo animal.
- Chiça, os tiros estão fracos!- exclamou, em resposta ao som que não agradara a nenhum dos membros da expedição, habituados a estampidos fortes. Teriam, provavelmente, sido mal carregadas as balas.
Foi quando decidiram acautelar-se, deixando os dois projécteis restantes para uma eventual defesa.
Assim, abandonaram o campo de fogo, sem saberem com que espécie de animal se haviam confrontado. António duvidava já que se tratasse de leões. Do que não restavam dúvidas era que um dos animais, se não tivesse morrido, se encontraria ferido.
- Era, pois. Não viu o brilho dos olhos? Aquilo é leão de certeza!
- Desconfio que não. Mas amanhã veremos.
- Chefe, e a cabra?
Nunca mais se haviam lembrado dela, após as peripécias subsequentes. Mas eram quase dez da noite e o acampamento ainda estava distante. Nem se preocuparam em localizá-la.
De manhã cedo, rumaram novamente ao Metache, em busca de vestígios.
- “Cajama”- diz um dos indígenas. Era como se referiam aos leopardos.
Nenhuma marca de sangue. Desiludidos, dispostos a voltar ao acampamento, acabaram por dar com o local onde um bicho tinha caído e se havia contorcido.
- Aqui!- grita António, chamando os companheiros.
- Opá! Cuidado! Pode não ter morrido…
- Vivo ou morto, não deve estar longe.
Iniciava-se, em plena luz do dia, o momento mais perigoso: o de procurar uma fera ferida.
Precavido para o que desse e viesse, António avançou com os restantes homens, com uma bala na câmara.
Uma dezena de metros percorridos, ouviram um leve ruído no capim alto. Continuaram avançando, cautelosamente. De novo, o mesmo barulho, quase localizado. Tirando partido da cor da sua pelagem, que se confundia com a terra africana, o animal pretendia esconder-se. Mas foi avistado por um dos indígenas. O perigo mantinha-se e António necessitava ainda de ver o leopardo. Concentrava agora nessa missão todo o seu esforço. Subiam as pulsações enquanto o suor escorria pela sua fronte. Sentidos em alerta máximo. Era a vida que estava em jogo.
Quando, finalmente, os seus olhos se cruzaram com os da fera, um fortíssimo urro, que ecoou na selva e arrasou os nervos de todos, saiu da boca escancarada do animal, acompanhado de um querer mover-se rapidamente na direcção em que os caçadores se encontravam, no preciso momento em que uma bala lhe atravessava o tórax.
Mas o animal tinha ainda vida e erguia a cabeça.
Terceira bala, no pescoço, deu por findos os seus dias de vida.
Enquanto os pretos olhavam para António, a alegria visível nos seus rostos, este sentia ainda presente o rugido pesado e cavernoso que pela primeira vez ouvira. Aos seus sorrisos, respondeu com outro sorriso, o mais amarelo de sempre.
Acercaram-se do corpo inerte e concluíram que o primeiro tiro, o da véspera à noite, havia despedaçado o quadril do leopardo, imobilizando-o. O animal, com dois metros de comprimento e cabeça grande, redonda, impressionava, apesar de morto.
Só depois de trazido o troféu para o acampamento, e após se ter feito fotografar junto dele, é que conseguiu, finalmente, sentir-se contentíssimo, ultrapassada a primeira prova de nervos.
Inacreditável, como anos antes nunca lhe passaria sequer pela ideia vir alguma vez a estar próximo de um leopardo e agora, não só vivia no território destes, como conseguira caçar um.
Animal tão belo quanto cruel, era ainda mais terrível que o leão ou o tigre, dada a agilidade com que se deslocava, saltava ou trepava.
O leopardo, ou onça, não mata para satisfazer necessidades alimentares, como o leão. O seu instinto sanguinário leva-o a matar pelo prazer de matar.
(…)