13 novembro 2008

A chuva pingava o dia num compasso lento, nesse Outono de 1947.
As ruas do Porto apresentavam-se quase desertas, à excepção dos grupos de meninos que diariamente enchiam os bairros numa brincadeira que se estendia até à janta.
Vestiam calções puídos e camisolas desbotadas. Uns calçados, outros descalços, brincavam às apanhadas, faziam estafetas, competições de berlinde. Corriam atrás de bolas, feitas à mão com velhas meias de senhora.
Os dias escoavam-se sem história, em jogos que se repetiam, amizades infantis no bairro das Antas. Tanto lhes dava para roubar fruta nas árvores próximas - para satisfazer os défices dos estômagos revoltos - como para desatarem a correr como se as forças nunca lhes fossem faltar e o mundo estivesse para acabar.
Podia ter acabado para Rui naquela tarde.
O carro surgiu, galgando terreno desalmadamente numa velocidade excessiva para a Av. Fernão de Magalhães. Só deram por ele quando os travões produziram aquela chiadeira assustadora de quem se depara com o perigo demasiado tarde.
BONC! Um estrondo de colisão, um miúdo que voa, projectado pelo impacto do acidente.
Os amigos afluíram num ápice para ver como Rui se encontrava. A queda fora aparatosa, o embate bastante forte. Ele, só se apercebeu do sucedido uns momentos depois. Fora tudo demasiado rápido, sobretudo inesperado. O mundo de pernas para o ar, a respiração suspensa, a compreensão toldada.
As dores só viriam mais tarde. Muito depois de se ter levantado, amparado pelos outros miúdos. Muito depois de ter recusado a oferta que o condutor lhe fizera, levá-lo ao hospital. No seu susto, a ingenuidade falou mais alto e ditou-lhe que não aceitasse. Temia pela descompostura que a mãe lhe infligiria se suspeitasse do sucedido. Que, naquele tempo, o receio da ira materna era o maior dos males para quem só esperava um dia após o outro, numa eterna brincadeira de rua despreocupada, apenas ensombrada por um ou outro momento de fome…
(este conto baseia-se numa história que o meu pai me contou, que ele próprio protagonizou em criança)

18 comentários:

Patti disse...

Excelente Filox.
Na existência da pobreza e da fome, todos os outros males são secundários.

Si disse...

A blogosfera em sintonia.
Caso raro, pelo menos para mim, que sou nova nestas andanças.
De uma forma ou de outra, o fio condutor guia a mão de quem escreve por aqui para aquilo que pais e filhos vivem entre eles, tão diferente hoje de outrora, embora não necessariamente melhor em inúmeros aspectos.
Beijinhos

BlueVelvet disse...

Ainda bem que todos os males foram umas dorzitas no corpo moído.
Eu conheço um que caíu numa fossa em Alvalade e ia morrendo afogado em ....calculas, não?
Pois não disse nada à mãe com medo.
Outros tempos e um excelente post.
Beijinhos

Elvira Carvalho disse...

1947 foi um ano abençoado. Porquê?
Porque eu nasci, rsrsrs.
Gostei do conto. Muito.
Um abraço e bom fim de semana.
No Sexta, um poema que talvez goste de ler.

Pitanga Doce disse...

E lá vou eu contradizer a todas as minhas amigas. Meninas, tudo o que os pais faziam naquele tempo era dar uma surra com vara de marmelo, talvez...E agora? Acho que hoje as crianças têm mais razão para terem medo dos pais. Muito mais, e calam.


beijos meninas

São disse...

Cada época tem os seus riscos.
Quanro à escrita, acho-a boa.
Bom fim de semana.

vieira calado disse...

Tal e qual assim!
A "justiça" caseira era mais forte.

Bom fim de semana

mundo azul disse...

...outros tempos!
Melhor ou pior? Quem poderá dizer?

Muito bom o seu texto!


Beijos de luz e um final de semana feliz...

Odele Souza disse...

Bonito texto Filoxera. E que bacana que é baseado na históia que teu pai te contou.Ele vai gostar de saber que te inspirou a escrever este conto.

Um abraço.

jo ra tone disse...

Belos tempos em que se ouviam histórias da boca dos nossos pais.
senados ao borralho, que fizeram parte da nossa boa educação.
Bjo

zito disse...

Hoje os grupos de meninos na rua não existem pois cada um vive no seu quarto ligado por um PC ou playstation jogando ou falando em rede mas só..........
E os meninos que andam na rua sonham em sofrer com a ira materna .....
Belo texto e bom fim de semana

Alexandre disse...

Não sei porquê mas a tua escrita e a tua história trouxe-me à viagem o Aniki-bobo do Manoel de Oliveira, talvez porque tu soubesses descrever tão bem as cenas e por se ter passado nessa cidade mágica, o Porto!!!

Muitos beijinhos!!! Bom domingo!!!

Isamar disse...

Escreves tão bem, amiga! Muitos dos teus posts mereciam um conhecimento mais alargado.
Beijinhos

Si disse...

Hoje passe lá por casa, sim??
Tenho uma 'piquena' comemoraçãozita...
Beijinhos

1/4 de Fada disse...

Tão bem escrito, este pequeno conto! E era mesmo diferente, a relação entre os pais e os filhos...

Pitanga Doce disse...

Mostrei a foto á Julinha (sabes do que falo). Ela diz que conhece, e que tem o dvd e o carro, aqui, chama-se Relâmpago!

Patti disse...

.. e o respeito que existia na altura.

Anónimo disse...

Mais uma vez um fantástico texto.
Mesmo com tantos perigos a espreitar a cada esquina, que bom era brincar na rua (correr, pular, brincar as escondidas, et, etc) as crianças de hoje (infelizmente penso eu) não têm tal sorte.

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