O incisivo central debatia-se com as suas angústias, preso por uma ligação cada dia mais fraca.
Sabia que teria de deixar a boca onde crescera. Ouvira histórias onde lhe chamavam dente de leite, estava consciente de que outro viria tomar o seu espaço, ma não havia forma de ganhar coragem. Abandonar a boca onde sempre vivera? Nã!... Isso de deixar para trás os amigos, as rotinas, aquele fresquinho com sabor a morango que todos os dias experimentava, num ritual de higiene que se repetia quase sempre? Nem pensar!
Sentia-se cada vez menos preso à gengiva, porém cada dia mais preso ao seu espaço de sempre. Sim, definitivamente isso de largar para sempre o que sentia como uma vida confortável e atirar-se para fora de um universo tão familiar, não era para si.
Outros dentes que se fossem embora primeiro. Talvez –talvez!...- se soubesse que tinha amigos já lá fora, e que eles tinham gostado da mudança, se lançasse nessa aventura. Mas não queria ser o primeiro a cair. Porque não haveria de ir um molar ou um canino à frente? Diziam que até era motivo de orgulho, ser o primeiro dente a cair, mas este incisivo dispensava destaques. Não nascera para protagonismos nem para aventuras. Sabia que podia dar azo a uma surpresa da fada dos dentes, mas a coragem não era, decididamente, o seu forte. Só queria continuar ali, no meio dos outros dentes (nem se importava que lhes chamassem “de leite”, o que era um perfeito disparate, então não se viam claramente que todos eles eram bem sólidos?), a trincar maçãs e gelados e a sorrir.
O tempo passava sem que arriscasse a queda.
Um dia, já havia um incisivo lateral a abanar, tal como ele. Agora parecia que todos os seus companheiros faziam apostas sobre qual seria o herói, o primeiro a aventurar-se. A eminente saída de qualquer um tinha-se tornado assunto do dia, à boca fechada. E aberta… O sossego que até então conhecera ameaçava nunca mais voltar. As piadinhas e as provocações tornaram-se o tema forte daquela boca. Enquanto uns insinuavam que o lateral cairia primeiro, outros apostavam que seria o central.
Aquilo já começava a consumi-lo. E ele não se via a si próprio como um medroso… Mas, a manter-se aquele seu receio pelo mundo lá de fora, ia acabar por ser ultrapassado pelo lateral. E isso de ficar para trás era coisa que não sabia se seria boa…
Andaram ali os dois, semanas a fio, abano daqui, abanas dali, mas nenhum dava o salto.
Até que o incisivo central se deu conta que, se se aborrecia com aquele ambiente de “bocas” e sabia da inevitabilidade de ter de sair um dia, então mais valia ser o primeiro. Esperaria pelos companheiros lá for, pronto a servir-lhes de cicerone, olhado com admiração pelos seus pares.
Foi assim que, um dia, a Mafalda acordou e, ao começar o pequeno-almoço, segurou nas pontas dos seus pequenos dedos aquele que seria o primeiro dente para a sua fada dos dentes.