09 fevereiro 2015


O que mais recordo de S. Pedro, da minha infância, é a banca de jornais que ladeava a estação de comboios. 
Lembro-me ainda da mercearia, da padaria, que chegou a funcionar - por pouco tempo - numa roulotte; do barbeiro; do engraxador e das Galerias S. Pedro (uma simples loja de pronto-a-vestir, à saída da praceta onde morávamos), cujo cão que me fazia companhia enquanto eu esperava a carrinha do colégio. E duma papelaria que passava despercebida, ao fundo da rua. Mas já estou a desviar-me do início: a barraquinha de jornais junto à gare.
Eu superava a pequenez dos meus seis anos, apoiando um pé no rebordo do quiosque, guindando-me à altura do balcão, onde os dedos se fincavam, permitindo-me assistir à conversa. Se o murinho era azul ou a minha imaginação o pintou de tal cor, já não sei. Mas a minha mãe tende a concordar.
Gostava de ter uma fotografia dessa banca, coberta por chapa de zinco, ondulada. 
O jornaleiro era o Sr Porfírio. Dele, tenho uma vaga ideia. Embora, como em relação ao quiosque, já não saiba onde termina a lembrança e se funde com a fantasia. Ali se vendia também tabaco. Eu ia, aos sábados, com o meu pai, comprar os jornais e os cigarros. Por vezes, a cautela da lotaria. Uma fracção, a ver se a sorte se enganava. A conversa era rápida, entre cliente e vendedor. Usavam os respectivos nomes enquanto comentavam as notícias. 
O meu pai era homem de hábitos regulares. Horários repetidos, sem desvio no costume dos calendários. Vivia perto da estação. Saía para o comboio, quase sempre, em passo de corrida, ao som do trrim-trrim da passagem-de-nível. Dizia, com agrado, que era o seu exercício matinal. Regressava de Lisboa sempre no mesmo horário. As tardes repetiam-se, como os movimentos do relógio.
Até que um dia. Ou melhor: uma tarde.
O Sr Porfírio adiantou-se. Largou o seu posto de vigia. Foi esperar o Sr Barros à plataforma.
De expressão iluminada, não tardou nas felicitações, convencido do motivo da comemoração. Sem entender o porquê da inusitada alegria, o meu pai lá foi ouvindo. O jornaleiro contando. Ambos estranhando, já.
Pousada a precipitação, detalhados os pormenores numéricos, o palavreado terminou com ambos esclarecidos. Concluíram que a sorte continuava certa. Isto é, distante. Quem se enganara fora o Sr Porfírio. 
O número que vendeu ao meu pai, ao contrário do que estava convencido não era o premiado.

02 fevereiro 2015

Alzheimer


Terminei a leitura do livro que serviu de base ao argumento para o filme que estreia esta semana, sobre uma professora a quem, aos 50 anos, é dito que sofre de Alzheimer.
O livro é duro? Nada, quando comparado com a realidade.
Ficamos com uma leve ideia do que será o declínio.
Não assistimos aos acessos de agressividade. Ao isolamento a que o doente e a família são condenados. Não sofremos ao ver alguém que amamos enfiar uma mão num tacho com água ao lume ou numa tomada. Não presenciamos as quedas, o uso de fraldas, os conflitos familiares que desencadeia.
Não tanta coisa…
Ainda assim, aconselho.
Sobretudo para quem ainda tem a desfaçatez de fazer piadas acerca de Alzheimer. Não é uma amnésia. Não é “só” desorientação, perda da capacidade de cálculo. É tudo. São infecções respiratórias recorrentes, seguidas de infecções urinárias. É descoordenação motora, incapacidade para se alimentar ou beber, uma total ausência da realidade, presente ou passada.
É a falta de respeito de quem desconhece. É a morte antes da morte.
Não há por que lutar.
Porque, quando alguém que amamos tem Alzheimer, a esperança é a primeira a morrer.

LinkWithin

Blog Widget by LinkWithin