30 março 2022

Deolinda

 

Fez ontem sessenta anos que Deolinda morreu.
Cresceu na Sobreira, perto do Porto, numa família numerosa, onde apenas a última filha, adoptada, foi à escola. Os restantes dez foram ajuda nos trabalhos de campo e domésticos dos pais.
Não sei muito sobre a sua vida. Sei que aos 23 anos, quando casou, trabalhava como ama dum menino num palacete na Foz, no Porto. O casamento, bichanaram-me recentemente, parece ter sido arranjado pelos patrões. Deolinda casou com outro empregado da família e tiveram um filho, que os patrões apadrinharam, e uma filha, com menos de dois anos de diferença.
Quando estes eram crianças, o peso da autoridade do marido fez-se sentir. Mas ela não era mulher para se encolher. Injustiçada e indignada, pegou nas crianças e saiu. Num tempo em que as mulheres não deixavam os homens, ela saiu. Sem apelo.
Tentou que a zanga do pai dos filhos, despeitado, não se reflectisse sobre estes, mas sem sucesso. As vidas continuaram a decorrer nas proximidades uns dos outros, porém o pai não falaria mais a nenhum dos três.
Como padeira, Deolinda mudou de vida. Moravam numa ilha e distribuía pão às portas das freguesas. Não sabia ler, o que lhe causava desgosto. Mas nas contas ninguém conseguiria enganá-la.
Por vezes levava consigo a filha e a menina recebia guloseimas, que fazia questão de partilhar com o mano.
Era uma mulher de fé. Criou os filhos no cumprimento dos sacramentos. Quando chegou o momento de fazerem a primeira comunhão, a mãe ofereceu um fio a cada um, com um anjo da guarda.
As crianças cresceram ouvindo-a cantarolar as canções da fadista preferida, Amália.
Dos seis netos que viria a ter, só conheceu o primeiro, meu irmão, que ajudou a criar.
Um dia, a doença rasteirou-a. Era ainda nova.
O menino de quem fora ama, então já médico, foi uma das visitas que recebeu no Hospital de Santo António, onde já nada pôde ser feito.
Faleceu com 49 anos. Ontem, que foi o 60º aniversário da sua morte, lembrei-me de partilhar o que sei desta minha avó, a paterna.

27 março 2022

Eu sou a minha própria mulher

 

 


São duas horas de monólogo de Marco Almeida, que demonstra uma versatilidade a toda a prova.
Dá corpo e vozes a 35 personagens, nesta “celebração da liberdade e da identidade, do respeito por cada um e a luta por direitos iguais” com que o Teatro experimental de cascais resume a peça.
Duas horas sem intervalo, entre a pele de uma Charlotte von Mahsdorf e 34 outras. Num segundo encarna os gestos pausados e a voz de inflecções súbitas e trejeitos femininos e no instante seguinte irrompe num vozeirão tonitroante que se destaca entre uma cenografia toda ela espantosa.
São tons que vão do masculino corrente ao feminino exibicionista duma pivot, do gutural quase exclusivo dos filmes de animação ao queixume rastejante dum velho que sofre.
Com esta Charlotte andamos de montanha russa, entre o riso e a apreensão, o escárnio e a surpresa, onde nenhum pormenor desta encenação de Carlos Avilez é menor que perfeito.
Com esta Charlotte, vamos, pela mão duma idosa amante de antiguidades, conhecer a história do museu Gründerzeit e explorar os acontecimentos do século XX, numa Berlim fustigada pela guerra e passada a pente fino pelos nazis e depois pelos comunistas. Uma Berlim não acolhedora para que não se encaixava nos padrões “normais”.
Se, com o enredo, somos levados a encontrar semelhanças com a actualidade, a música fez-me viajar entre recordações, quer de viagens, quer de quando, aluna do secundário tive o gosto de na mesma sala assistir, com a minha família, a outros momentos dramáticos.
Passaram quase 24 horas e continuo a pensar: como é possível? Uma recordação que ficará, pelo desempenho brilhante de Marco Almeida. Por tudo.

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