10 junho 2013

O Contador de Retratos


Escrevi sobre “Deixei-te o Sorriso em Casa” assim que descobri a obra do António Santos, há dois anos.
Voltar a escrever sobre uma obra deste autor é um gosto. Mas é também uma responsabilidade enorme. Sobretudo quando o prefácio do seu novo livro, “O Contador de Retratos”, é da autoria de Guilherme d' Oliveira Martins, que tão bem expôs, sem exibir, o seu  estilo e o conteúdo.
A escrita de António Santos é daqueles estilos que dão vontade de anunciar ao mundo “não estou para ninguém”, instalar-me comodamente no sofá ou no puff a ler, acompanhada dum bom tinto e não parar senão no final.
Sempre com um sabor residual no paladar, ávido por mais. Mais literatura assim.
Que dizer deste novo livro?
Gosto de tudo. Sobretudo, dos pormenores, que conferem realismo aos quadros que o autor descreve, como se levasse o leitor pela mão.
Desconcertante, o primeiro conto. Sobre a imagem de um casal à mesa dum requintado restaurante parisiense. Cerzindo, em torno dum livro de João Ubaldo Ribeiro, uma teia de deambulações misteriosas, à qual uma mulher desalmada vem dar essência.
Imaginei-me num terraço cheio de zingarelhos dados à costa, no segundo conto. O da fotografia de Dallas, em Novembro de 63.
Tornou-se inevitável ir procurar no mapa-mundo a localidade onde o coronel se refugiara, numa casa de madeira com um terraço cheio de velas.
Fabulosa descrição do ambiente, dos petiscos, num relato que nos fere, certeiro, no ponto das oportunidades perdidas.
O terceiro retrato apresenta-nos um militar numa praia do Norte de Moçambique e os seus fantasmas.
Os búfalos, as tendas, as mulheres atiçando o fogo. Mais do que um tipo de fogo…
A promessa dum segredo envolta em fumo. Um ancião preparando uma infusão. Os macondes preparando-se para uma caçada.
E tudo sempre ali. Onde tudo sempre fora.
O quarto retrato é do elegante Palazzo Giustinian, adornado por duas amigas, observadas por uma máscara dourada. Um recanto com histórias para contar, numa festa de Carnaval. Um crescendo de sensualidade contagiante. E mais não revelo…
Temos depois o do homem de charuto na boca, a entrar na Finca Vigia. Um arquivista, amante de mojitos e de puros, em quem tudo nos espanta.
O sexto retrato tem a moldura em cristal já partida. E revela um carro que levava um inspector, que levava investigações, ternura e adiamentos. Culmina numa velocidade galopante rumo ao desfecho improvável.
Um palacete sobressai, imune ao nevoeiro denso de Sintra, no sétimo conto. Redondo. Tanto quanto intrigante. Habitado por lendas e assombrações.
O oitavo retrato, do major Américo, na praia de Barril, em Tavira, com a sua cana de pesca, uma alegoria a demonstrar-nos o trabalho dos anjos-da-guarda, por vezes tão atarefados que nós, mortais ignorantes, nem suspeitamos…
D. Magnífica e o marido surgem-nos no nono retrato, em primeiro plano, junto à azenha. Ao fundo, a lupa, empunhada pelo sobrinho. Numa vila com dupla personalidade (Verão versus Inverno), tia e sobrinho dedicam-se à arqueologia com o intuito de decifrarem a causa de morte do tio.
Um cenário cinematográfico. Aliás, constante ao longo de todo o livro.
O décimo conto, em torno da imagem dum Carocha 1200 de 1967, apresenta-nos um comentador que não dá conta dos recados pessoais, um director-geral que dá despacho a assuntos afins e outras cenas que bem retratam os patetas do panorama nacional. Que os promove, cega e insistentemente, aos lugares de destaque de que esta sociedade balofa é feita.
A prima Margarida, quando ainda namorava com um tipo do governo, é a protagonista do décimo primeiro conto. Retrato duma doutora enquanto pobre na alma. Rodeada de gente sem dinheiro, rica por dentro. Que a ajuda num dia em que tudo corre mal. Um dia que termina num acorde perfeito, em Mi menor, duma Gibson Les Paul.
E o resto é estilo. O característico da escrita do António Santos.
O mistério insinuante. O humor subtil, inteligente. As frases de rajada. Certeiras. As expressões que mais ninguém se lembraria de inventar. O drama equilibrando-se com leveza nas surpresas que o destino nos reserva, insondável. Os jogos de palavras entrelaçados em silêncios mais que justificados.
Porque há coisas que não se dizem.

01 junho 2013

Parabéns, Mafalda!



É com ternura que dá a mão à avó para descer as escadas, receosa que a avó, cuja vista operada ainda piorou, não veja bem os degraus. A mesma ternura com que colhe uma flor silvestre para me vir dar ou faz umas espetadas de fruta, reserva a primeira para o irmão “porque ele ADORA espetadas de fruta” e ainda leva uma para a professora.
A minha filha é assim. Ternura e rebeldia em doses generosas.
Parecia não querer criar raízes cá dentro. Quando, com poucas semanas de gestação, era suposto ouvir-se um coraçãozinho a bater, a eco ainda não revelava nada. Cinco dias depois, já se ouvia o coração anunciando vida, mas detectava-se um descolamento de placenta ameaçando-a. E houve ainda segundo descolamento. De modo que a Mafalda passou boa parte das suas primeiras semanas de gestação num repouso total que tanto me desgastou, por não ter feitio para estar quietinha.
A situação clínica normalizou mas, perto do final da gravidez, o luto pelo meu pai fez-me recear o efeito negativo que a perda pudesse ter na formação duma bebé incapaz de se subtrair aos neurotransmissores.
Cedo concluí que nenhum destes percalços foi marcante para a minha menina. Ou, se o foi, teve o resultado oposto: ela anda sempre apressada. Corre, não anda. E feliz, sorridente, extrovertida. Como quem rejeita as condicionantes em que foi amadurecendo no ventre da mãe.
Ao nascer, assim que a parteira se apercebeu que ela vinha aí, disse-me que ia chamar o obstetra. Quando ambos regressaram, já a Mafalda estava cá fora.
Ainda não tinha dois anos quando partiu a cabeça, graças às correrias. Quem a vê, lourinha, olhos azuis, ar quase angelical, não pressente a força desta criança que tem tanto de autónoma quanto de quase bebé.
A Mafalda é um furacão. Deixa marcas à passagem. Depois dela, nada permanece igual. Tatua os corações, enche os ambientes, marca paredes. O seu espírito criativo tudo impregna com o seu cunho pessoal. Mas é também uma brisa doce que nos acarinha, nos brinda com o melhor sorriso e faz com que nos sintamos importantes. É generosa, tanto quanto é linda. Sagaz, tanto quanto teimosa.
E é a filha mais amada do mundo. Porque é a minha filha. Que hoje completa sete aninhos.

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