02 maio 2014



Arrumámos a imaginação e não voltamos a tocar-lhe com receio do cheiro a naftalina.
Levamos os dias numa sucessão ininterrupta de calculismos.
Aplaudimos os enredos onde a magia impera mas desprezamos as leis do coração.
Acreditamos em cada filme que nos conduza a um milagre, porém, na vida, só a razão nos orienta.
E agora digam-me como podemos educar as nossas crianças se o principezinho não é transposto para o nosso mundo?
De que forma pretendemos ajudar os amigos se desconfiamos da sua fé no que nos parece vazio?
Ambicionamos o carácter excepcional das personagens da literatura, sorrimos a cada verso dum poema, apaixonamo-nos pela imprevisibilidade das narrativas e depois amarrotamos todo este fascínio ao esquecermo-nos que no chão, e sem tecnologia, brincamos muito melhor com os nossos filhos.
De vagar e de mãos se faz a brincadeira, como a paixão.
Deixamos de enaltecer a criatividade e encantamo-nos com gadgets que nos alteram a perspectiva da conexão mais básica a esta grande ordem cósmica chamada universo.
Ignoramos a vida no tempo presente do indicativo projectando ambições no futuro condicional.
Cerceamos as nossas experiências porque absorvemos preconceitos dum mundo que nos quer formatados nos mesmos moldes e padroniza comportamentos e conceitos.
Tememos a condenação pela diferença. O medo quase lei, a tolerância e o sentido crítico quase relíquias.
Queremos o mensurável. Falamos de índices e de valores materiais porque desaprendemos o valor dos humanos, dos animais, dos ecossistemas.
As pessoas crescidas gostam de números, já dizia o herói criado pelo aviador.
Resta esperar que continuem a nascer crianças neste planeta envelhecido e torto.
Para que nunca falte quem nos reconduza ao pôr-do-sol, à observação das estrelas, ao tempo que dedicamos às nossas rosas.

1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

Nem tenho palavras para comentar a excelência deste teu texto.
Que o é pela qualidade da narrativa e pelo conteúdo.
E tens carradas de razão em tudo o que dizes.
O teu texto, por outro lado, é perturbador, já que levanta questões bem pertinentes, tal como a convivência com as crianças, que actualmente é mesmo feito com base nas tecnologias...
Minha querida Filó, gostava de te abraçar agora mesmo, porque o que escreveste é digno de ser publicado e lido em grande escala (numa revista, por exemplo). Acho, até, que tens potencial para fazer crónicas semanais em qualquer periódico.
Tem um bom fim-de-semana, querida amiga.
Beijo.

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