11 maio 2014



Lisboa começava na estação de comboios do Cais do Sodré.
Até à minha adolescência, era na capital que as compras se faziam.
Na era ante-shoppings, saíamos da gare ferroviária pelas escadinhas onde os ardinas empilhavam os jornais para venda. Ali se liam primeiras páginas dos diários com notícias políticas, se compravam almanaques Disney ou se miravam os dotes físicos das mocinhas que embelezavam as capas de revistas ditas masculinas.
Um nadinha para a direita, as bancas da fruta, em metal colorido, a par das paragens de táxis.
Era assim que começava a tarde quando tínhamos oito ou dez anos e íamos à Sepordagio ou em busca de roupa para substituir a que já ficava curta.
Eu e a minha mãe atravessávamos a Praça do Duque da Terceira e íamos ao emprego do meu pai para eu poder surpreendê-lo e namorar o navio de cruzeiro à escala, da linha Costa, que recebia os visitantes da Orey Antunes. As conversas desvaneciam-se então, enquanto na minha imaginação aquela réplica passava a navegar no meu quarto, com alguns pequenos bonecos de borracha como viajantes.
Raramente, almoçávamos os três, no Porto de Abrigo, ali numa transversal.
Os percursos eram frequentemente feitos a pé. Por vezes, apanhávamos um autocarro para o centro. As pernas das crianças eram mais costumeiras nestas deambulações que de consumista pouco tinham.
O regresso normalmente premiava o cansaço com uma paragem na padaria Caneças, onde nos embrulhavam pães-de-deus cujo aroma nos acompanhava até casa, numa antecipação gulosa do momento de lhes ferrar o dente.
Fazer uma compra era, então, um programa. Uma tarde com história.

Histórias que ocupam lugar cativo cá dentro. Onde eu continuo a ver o meu pai descer os degraus para vir ao hall de entrada da Orey Antunes receber-nos com o seu beijo perfumado enquanto eu sonhava perante a maqueta dum navio.

1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

Recordar os locais da nossa mocidade é sempre reconfortante. Não cresci em Lisboa ou sequer perto, mas reconheci os locais que falaste e o ambiente da época.
E não fazia ideia de que o teu pai tivesse trabalhado na Orey e Antunes.
Gostei do teu texto, todo ele ternura nas recordações que abordaste.
Tem um bom domingo e uma boa semana.
Um beijo, querida amiga Filó.

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