“Ora vamos lá ver quem ganha hoje. Quem será que tem as mãos
mais quentinhas?”
A Conceição vem cá a casa muitas vezes. Ao sábado, já se
sabe, é certinho que aparece para almoçar.
E repete sempre isto. Pega-me nas mãos, como se eu não
tivesse nada a dizer ou querer, e lá volta a mesma pergunta, que já cheira
mal...
A culpa é das minhas filhas. A mais velha habituou-a ao
almoço semanal desde que a vizinha ficou viúva e agora
quem a atura mais a história das mãos quentes sou eu.
O pior é que ainda tenho de ouvir as minhas filhas dizerem
“mas que mal tinha, o paizinho juntar os trapinhos com a D. Conceição?”, como
se juntar os trapinhos com alguém fosse coisa que me pudesse passar pela
cabeça…
Ora essa! Estou velho, mas não estou parvo!
Então, agora que estou sossegado, com setenta e tantos,
viúvo há muitos anos e a viver com uma filha, para que preciso eu duma mulher?
Já vivi o que a vida tem de bom. Nasci no tempo da
monarquia, lembro-me da passagem do século e do atentado que matou o rei e o
príncipe. Peguei numa arma quando as distribuíram no Monsanto para defesa da
república. Casei e tive oito filhos.
Quatro morreram ainda em bebés, uns anjinhos. Ficou-nos o
mais velho e três moças, as mais novas.
Depois morreram famílias quase inteiras, quando morávamos em
Silves. A tísica andava por aí com tais ganas que quando passávamos frente a
certas portas era de esguelha…
Andei por esse país ao serviço da Junta Autónoma de
Estradas, como chefe de conservação de estradas.
Havia muita miséria por todo o lado. Aos sábados os pobres
vinham pedir à vila de Mértola. Dávamos às gaiatas um pão, que elas lhes
entregavam, e eles logo distribuíam entre todos. Os homens apareciam todos os
dias a pedir trabalho.
Quando algum morria, fui conseguindo reunir uns escudos para
darmos à viúva, que não tinha direito a nada.
Lembro as guerras, os noticiários na rádio e os panos pretos
nas janelas, à noite.
A minha Leonilde morreu do coração em 1960. Já não assistiu
à coragem do General Sem Medo…
Em 1964, o meu filho, que estava na Lunda, morreu num
acidente de carro e nem pude sepultar-lhe o corpo.
Agora passaram 6 anos. Estou velho e já fintei um cancro. Só
quero que me deixem viver um pouco mais, em sossego e saúde.
Passear de carro ao fim-de-semana com a minha mais velha,
que não casou. Ler e ver alguma televisão. Pouca, que as Conversas em Família
deixam-me uma azia cá dentro…
Já não tenho muita esperança de algum dia ver este país
mudar de rumo ou de me tornar avô. Mas marido, outra vez? Nunca! Nem com aquela
Conceição, com mais rugas na cara que eu, nem com ninguém.
Ora essa! Estou velho, mas não estou parvo!
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