O meu pai foi um Homem com H maiúsculo. Criado por uma mãe
sozinha, que trabalhava também fora de casa e cantarolava os seus fados
favoritos. Essa avó que não conheci criou um filho que soube ser pai sem ter
conhecido o seu próprio pai. Fez dele um homem que soube ser um exemplo de
sageza.
Íntegro como poucos
ousam ser (perdeu a oportunidade duma vida por não esconder a sua ideologia
política), ensinou-me os melhores valores, que espero ir conseguindo honrar.
Não teve quem lhe amaciasse o caminho. Cedo largou a escola
e começou a trabalhar, consertando guarda-chuvas.
Colmatou a falta de estudos com um forte temperamento
auto-didacta. Leu muito, aprendeu sobre diversas áreas e ainda não era adulto
quando começou a escrever críticas para os jornais. Nunca parou de ter um papel
activo na sociedade e foi isso que me transmitiu.
Ensinou-me que, se é aos doze anos que a injustiça se me
apresenta, é aos doze que eu devo encará-la e tratar de me bater por justiça. Sozinha,
que tem muito mais impacto que com um adulto por trás. E foi com os meus meios
que passei a enfrentar tudo.
Incentivou-me a ser a melhor (não posso dizer que o tenha
conseguido, mas ficou a lição). A não desistir. A batalhar pelas minhas
convicções e a saber questionar tudo quanto me quisessem fazer crer. A não esperar
palmadinhas nas costas e a não demostrar fraquezas. Recusava-se a elogiar-me directamente,
embora eu saiba que me elogiava quando falava com outros.
Sonhava viver numa biblioteca. O máximo que conseguiu foi
reunir tantos livros em casa que a minha mãe receava que o escritório caísse
sobre o vizinho. Resolvia as palavras cruzadas do jornal, sempre. Mesmo as que
traziam as quadrículas pretas por preencher.
Deixou-me a tolerância, o brio e temeridade. Deixou-me,
sobretudo, um orgulho indescritível por ter sido meu pai.
Hoje, faria 80 anos e eu não tenho espaço suficiente cá
dentro para acomodar as saudades. Este dia seria bem melhor se, em vez dum
vazio que as boas lembranças não chegam a colmatar, ele cá estivesse e
pudéssemos comemora-lo em família.
Assim, tenho de me limitar a homenageá-lo como sei. Com palavras.
Afinal, boa parte do legado que me deixou.
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