17 abril 2017

80 anos, já não comemoramos...

O meu pai foi um Homem com H maiúsculo. Criado por uma mãe sozinha, que trabalhava também fora de casa e cantarolava os seus fados favoritos. Essa avó que não conheci criou um filho que soube ser pai sem ter conhecido o seu próprio pai. Fez dele um homem que soube ser um exemplo de sageza.
Íntegro como poucos ousam ser (perdeu a oportunidade duma vida por não esconder a sua ideologia política), ensinou-me os melhores valores, que espero ir conseguindo honrar.
Não teve quem lhe amaciasse o caminho. Cedo largou a escola e começou a trabalhar, consertando guarda-chuvas.
Colmatou a falta de estudos com um forte temperamento auto-didacta. Leu muito, aprendeu sobre diversas áreas e ainda não era adulto quando começou a escrever críticas para os jornais. Nunca parou de ter um papel activo na sociedade e foi isso que me transmitiu.
Ensinou-me que, se é aos doze anos que a injustiça se me apresenta, é aos doze que eu devo encará-la e tratar de me bater por justiça. Sozinha, que tem muito mais impacto que com um adulto por trás. E foi com os meus meios que passei a enfrentar tudo.
Incentivou-me a ser a melhor (não posso dizer que o tenha conseguido, mas ficou a lição). A não desistir. A batalhar pelas minhas convicções e a saber questionar tudo quanto me quisessem fazer crer. A não esperar palmadinhas nas costas e a não demostrar fraquezas. Recusava-se a elogiar-me directamente, embora eu saiba que me elogiava quando falava com outros.
Sonhava viver numa biblioteca. O máximo que conseguiu foi reunir tantos livros em casa que a minha mãe receava que o escritório caísse sobre o vizinho. Resolvia as palavras cruzadas do jornal, sempre. Mesmo as que traziam as quadrículas pretas por preencher.
Deixou-me a tolerância, o brio e temeridade. Deixou-me, sobretudo, um orgulho indescritível por ter sido meu pai.
Hoje, faria 80 anos e eu não tenho espaço suficiente cá dentro para acomodar as saudades. Este dia seria bem melhor se, em vez dum vazio que as boas lembranças não chegam a colmatar, ele cá estivesse e pudéssemos comemora-lo em família.

Assim, tenho de me limitar a homenageá-lo como sei. Com palavras. Afinal, boa parte do legado que me deixou.

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