Só te disse adeus meses depois.
Não me ocorreu dizer adeus quando vi a tua urna ser engolida
pelo forno crematório.
Nunca se está preparada para dizer adeus. Nem ao fim de dez
anos de doença. Dez anos que levaram o que eras, deixando-me, em vez de ti, um ser
amorfo, sem brilho no olhar, sem força na atitude, sem a mordacidade das nossas
“bocas”.
Fiquei sem poder de negociação quando o Alzheimer se
instalou em ti. E ficou, para sempre, o meu calcanhar de Aquiles.
Naquele dia eu não estava preparada para te dizer adeus. Não
quando, para se despedirem de ti, vieram do Porto familiares, que te eram tão
próximos, e que continuaram desavindos e não se reaproximaram.
Não quando eu tinha uma vida dentro de mim, prestes a ver a
luz dum dia onde já não te encontraria.
Tenho vivido estes últimos quase sete anos com a dor
aninhada, carinhosamente, no lado esquerdo do peito, onde se guardam as tatuagens
invisíveis que a vida nos oferece sem pedirmos.
Tenho sabido lidar com ela, garanto-te que tenho.
Mas hoje fazes-me tanta falta! E essa do ocupa-me todo o meu
ser.
O Vasco está enorme e parece ter herdado alguns aspectos do
teu carácter.
A Mafalda far-te-ia babar. Menina, loura, olhos azuis,
sempre preocupada com os outros, toda ela charme.
Fazem-me falta as nossas danças cúmplices, rodopiando sobre
nós mesmos, num passo desajeitado que faria qualquer pessoa rir-se de nós. Os
olhares que nos dispensavam palavras. Até a tua exigência demasiada. A forma
crua como me fazias ver que cabe a cada um de nós enfrentar as suas fraquezas,
bater-se pelas suas causas.
Não te cheguei a dizer que foste um pai exemplar em quase
tudo.
Não me preocupa isso, porque sei que te disse, sempre, o
quanto te amava e admirava.
Mesmo quando já não me retribuías o abraço, quando o te
cérebro doente não decifrava as minhas os meus lábios encriptados. Disse-to
sempre. Não nos faltou diálogo nem o meu aconchego em ti.
Hoje, promete que não me censuras a lamechice, sim?
Porque hoje sou só saudade e lágrimas. E lamechice. Lamento.
Lamento não saber quando te vi pela última vez. A gravidez
impediu-me de entrar na enfermaria onde te foram roubados os últimos sopros.
Saíste de lá para um desfile triste de rostos conhecidos.
Lamento não termos conversado sobre os livros que me
deixaste e os autores que descobri depois.
Os filmes que gostarias de ter visto. Lamento não termos assistido a
mais concertos, não me termos bebido juntos uns copos de vinho, a acompanhar
uns conselhos paternais sobre os meus amores e desamores.
Lamento já não estares para te rires por eu levar as
angústias e as alegrias ao teu ouvido, tudo em doses generosas.
Segui os teus conselhos, pai. E os gostos que me incutiste.
E a garra.
Estás em cada linha que leio, cada palavra que escrevo, cada
luta que venço, cada manifestação que engrosso, cada sorriso. Cada lágrima.
Estarás sempre.
Só uma coisa não conseguiste ensinar-me: o que fazer com esta saudade dolorosa.
Infinita…
4 comentários:
Não tenho palavras para ti.
Abraço-te, muito.
Partilha de uma dor identica e de uma saudade atroz. Por isso as palavras morrem antes de serem escritas e deixando um abraço solidário saio com os olhos rasos de água.
"uma dor aninhada", como tu dizes ( e bem ).
Nunca nos esquecemos deles- nem poderíamos-, e, talvez por não estarem connosco,o que gostaríamos de lhes dizer cresce na mesma proporção da falta que deles sentimos.
Um abraço, um simples e forte abraço de entendimento e silêncio.
nunca estamos preparados...
;)
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