10 janeiro 2013

Acidente


A chuva pingava o dia num compasso lento, nesse Outono de 1947.
As ruas do Porto apresentavam-se quase desertas, à excepção dos grupos de meninos que diariamente enchiam os bairros numa brincadeira que se estendia até à janta.
Vestiam calções puídos e camisolas desbotadas. Uns calçados, outros descalços, brincavam às apanhadas, faziam estafetas, competições de berlinde. Corriam atrás de bolas, feitas à mão com velhas meias de senhora.
Os dias escoavam-se sem história, em jogos que se repetiam, amizades infantis no bairro das Antas. Tanto lhes dava para roubar fruta nas árvores próximas - para satisfazer os défices dos estômagos revoltos - como para desatarem a correr como se as forças nunca lhes fossem faltar e o mundo estivesse para acabar.
Podia ter acabado para Rui naquela tarde.
O carro surgiu, galgando terreno desalmadamente numa velocidade excessiva para a Av. Fernão de Magalhães. Só deram por ele quando os travões produziram aquela chiadeira assustadora de quem se depara com o perigo demasiado tarde.
Bonc! Um estrondo de colisão, um miúdo que voa, projectado pelo impacto do acidente.
Os amigos afluíram num ápice para ver como Rui se encontrava. A queda fora aparatosa, o embate bastante forte. Ele, só se apercebeu do sucedido uns momentos depois. Fora tudo demasiado rápido, sobretudo inesperado. O mundo de pernas para o ar, a respiração suspensa, a compreensão toldada.
As dores só viriam mais tarde. Muito depois de se ter levantado, amparado pelos outros miúdos. Muito depois de ter recusado a oferta que o condutor lhe fizera, levá-lo ao hospital. No seu susto, a ingenuidade falou mais alto e ditou-lhe que não aceitasse. Temia pela descompostura que a mãe lhe infligiria se suspeitasse do sucedido. Que, naquele tempo, o receio da ira materna era o maior dos males para quem só esperava um dia após o outro, numa eterna brincadeira de rua despreocupada, apenas ensombrada por um ou outro momento de fome…

(este conto baseia-se numa história que o meu pai me contou, que ele próprio protagonizou em criança)

5 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Também fui menino de brincar na rua... e a falta que hoje isso faz...

A.S. disse...

É sempre com emoção que te leio!...


Um beijinho!
AL

Mª João C.Martins disse...


Retalhos da história de tantos meninos e meninas. Retalhos da história à qual pertenço e, assim, pelas tuas mãos, revisito, com a emoção a bailar-me nos olhos. Foi tanto o que aprendi naquele tempo, entre o medo e a brincadeira, que às vezes, é preciso ler um texto assim, para perceber porque vejo a vida como hoje a vejo.

Obrigada!

Um beijinho

Elvira Carvalho disse...

47. O ano em que nasci.Apesar do País ter muita miséria e fome, as crianças brincavam na rua sem medo de raptos e outros perigos.
Que bom que seu pai não sofreu nada de muito grave.
Um abraço e votos de excelente Domingo

clickit disse...

A ternura com que falas dele... brincar, distraído, até que alguém dissesse "vem aí um carro".
Ensinarás todo esse tempo, cinzento mas alegre, de crianças, a teus filhos. O que está guardado para "uma lareira" da memória.
Bjs, grata pela presença e o gosto demonstrado. Falo pelos olhos, muito, aqui, ali, além.
da bettips

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