31 agosto 2012

No aniversário da Patrícia (volto a publicar)



Este ano, no aniversário da Patrícia, o estrondo de uma bala sobrepõe-se ao estampido do soltar da rolha de espumante. Pouco mais de um mês antes do seu aniversário, um tiro, meio a brincar, veio roubar-lhe o marido, pai do filho que espera (e não só), e trazer-lhe um desgosto, bem sério. Quem a vê, vê uma mulher bonita e nada mais.
Eu, vejo a menina que com 6 anos dormia ainda na minha cama de bebé, quando vinha passar férias à minha casa com as irmãs. Vejo a Patrícia que se apressavaa a responder, de rajada, quase zangada: "sopinha de canja", à nossa mania de a rotularmos de "sopinha de massa", devido à sua maneira de pronunicar os "s".
A menina dócil que conseguia ganhar as corridas, mesmo a quem tinha mais 5 anos que ela, foi-se tornando uma rapariga linda, empenhada em ajudar nas tarefas domésticas e na criação dos irmãos. Terceira filha dum casal que gerou oito, cedo a adolescente se tornou mulher, assumindo as responsabilidades caseiras e familiares com uma naturalidade que só ela conseguia. Os três benjamins são, em grande parte, produto dos seus cuidados e razão do abandono mais que precoce dos interesses escolares.
Ironia da vida, a Patrícia acaba por integrar a estatística das mães adolescentes, tão típica deste país, ela que apregoava não querer ter de cuidar de meninos tão depressa.
Quem a vê, não descortina a imagem da minha lembrança: a de uma menina tão linda que o olhar se detém sempre a apreciar o rosto harmonioso, moldado por um cabelo bonito, escuro e liso, invariavelmente comprido, olhos amendoados, lábios sorridentes vizinhos dum nariz suave, bem desenhado.
Quem a vê, se não a conhece, não vê aquela não Amélia, mas Patrícia "dos olhos doces, quem dera que fosses apenas mulher", como eu vejo. Como eu gostaria que fosse apenas mulher, e não a jovem cuja vida se apressou em correr mais depressa que ela própria quando pequenita. A mãe de três filhos, com um quarto bebé em desenvolvimento, numa gestação paralela à morte do pai. Uma gravidez casada com um rendimento mínimo. Desemprego é o termo mais generalizado na família: além da própria Patrícia, aplica-se à maioria dos sete irmãos, aos próprios pais.
Viúva em vésperas da terceira década de vida.
Basta repararmos na vida desta miúda para constatarmos o que, de tão evidente, não costuma ocorrer-nos: que é tão fácil ser-se feliz...
Acredito que nem tudo na vida é consequência das nossas opções.
E acredito que, um dia, as feridas da Patrícia serão cicatrizes cuja dor foi tratada pelo amor dos seus quatro filhos. Acredito ainda que, daqui por uns tempos, em vez da Amélia, do Carlos Mendes, a minha sobrinha me faça recordar a Mãe-coragem, do Brecht.


(A Patrícia, não obstante ser da minha faixa etária, é minha sobrinha. Recordo-a em todos aqueles pormenores da infância que fazem com que ela seja, como as suas irmãs, uma miúda, mesmo após décadas decorridas sobre a meninice: as preferências culinárias, os hábitos na hora de ir dormir, as brincadeiras.)

4 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Não tenho palavras que possam descrever o que senti com este seu texto.
Deixo um abraço extensivo à Patrícia.

Rogério G.V. Pereira disse...

Um beijo à Patrícia
Outro, para si

Mª João C.Martins disse...


Acredita, sim!

Porque a dor, às vezes, clareia a visão das coisas, retira-lhes a mesquinhez própria dos Homens e adoça-nos o gesto necessário.

Um beijinho para todas as mulheres e mães de coragem!

Branca disse...

Depois do que disse a Maria João não sei dizer mais nada.
Para além dos acontecimentos da vida que nos comandam, a Patrícia será forte, apesar deste país nem sempre merecer as mulheres que tem.

Beijinhos para ti e para a tua sobrinha.

Branca

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